Metano dos bovinos: culpado ou inocente?

A produção de metano pelos ruminantes está associada à capacidade de digerir alimentos fibrosos, um aproveitamento de recursos que de outra forma não poderia ocorrer.

As emissões de gases com efeito de estufa são o principal contributo antropogénico para as alterações climáticas globais. Devido à sua estrutura molecular, estes gases absorvem a radiação, predominantemente infravermelha, emitida pela superfície terrestre, assim contribuindo para o aumento da temperatura da atmosfera. Destes gases, é o dióxido de carbono que teve até hoje o maior contributo para o aquecimento global, seguindo-se o metano, do qual os processos digestivos dos ruminantes (bovinos, ovinos, caprinos, etc ...) constituem uma das grandes fontes de emissão.

Biologicamente, os ruminantes distinguem-se por terem o estômago dividido em quatro compartimentos. Quando ingerem o seu alimento, este vai para o primeiro destes, o rúmen, uma grande câmara de fermentação. O rúmen alberga uma comunidade microbiana extremamente rica, que tem a capacidade de degradar componentes das plantas como a celulose, transformando-as em compostos que podem ser assimilados pelos animais. Durante a permanência no rúmen, os alimentos vão passando para o segundo compartimento, o retículo, onde é avaliado o seu estado de digestão. Se o alimento presente no rúmen ainda estiver pouco digerido, pode retornar à boca (regurgitação) para ser re-mastigado (aquilo que observamos como o animal a “ruminar”). Caso o alimento presente no rúmen já esteja em estado avançado de digestão, pode passar aos restantes compartimentos do estômago e depois para o intestino delgado.

Devido a este complexo sistema digestivo, nomeadamente a sua componente fermentativa, os ruminantes têm a capacidade de processar alimentos ricos em fibra, dos quais o caso mais relevante são as pastagens. Processam, portanto, alimentos que não poderiam ser diretamente ingeridos por nós, pois não teríamos capacidade de os digerir, transformando-os em carne e leite, que constituem, estes sim, alimento para nós. No entanto, este processo fermentativo é um processo anaeróbio (sem oxigénio), que origina a produção de metano. Assim, a produção de metano pelos ruminantes está intrinsecamente associada à capacidade de digerir alimentos fibrosos, um aproveitamento de recursos que de outra forma poderia não ocorrer.

Para percebermos o efeito ambiental do metano emitido pelos ruminantes, é importante conhecermos a “história química” deste gás. Esta história começa com a fotossíntese feita pelas plantas da pastagem, que retira átomos de carbono da atmosfera, na forma de dióxido de carbono, CO2 (um átomo de carbono e dois de oxigénio), e os transforma nos tecidos da planta. A planta é depois ingerida pelo animal mas, durante a digestão, parte dos átomos de carbono do alimento são transformados em metano, CH4 (um atómo de carbono e quatro de hidrogénio), que se liberta para a atmosfera, onde vai contribuir para a tornar mais quente. Ao fim de 12 anos, em média, sofre uma série de reacções químicas que o vão transformar em dióxido de carbono (é para aqui que vai o seu átomo de carbono) e vapor de água (para onde vão os seus átomos de hidrogénio).

Assim, o metano emitido pelos ruminantes está associado a um ciclo fechado de circulação de carbono, em que todos os átomos de carbono emitidos para a atmosfera na forma de metano foram anteriormente retirados da atmosfera através da fotossíntese. O efeito de aquecimento de todo este processo é exclusivamente devido aos 12 anos que o metano permanece na atmosfera, dado que o efeito do CO2 produzido no final é cancelado pelo efeito do CO2 removido no início. Uma situação diferente, por exemplo, é o caso das emissões de metano associadas à exploração e uso de gás natural (neste momento uma maior fonte de emissão de metano que a digestão dos ruminantes), que têm um duplo efeito de aquecimento: o efeito inicial do metano e, 12 anos depois, o efeito do dióxido de carbono no qual o metano se transformou.

Esta diferença entre o metano de origem fóssil (com um percurso linear dos átomos de carbono entre metano geológico e metano atmosférico) e metano oriundo da fermentação digestiva dos ruminantes (em que os átomos de carbono percorrem um ciclo) tem levado alguns a afirmarem que este último não tem um efeito de aquecimento global. É uma falácia. Não há dúvida que o metano emitido pelos ruminantes tem um efeito de aquecimento, e não há também dúvida que devemos trabalhar para reduzir as suas emissões.

Professor de Ambiente e Energia no Instituto Superior Técnico

Retificação

Na crónica intitulada “Crónica Sobre habitação e memória”, da autoria de Carolina Chaves, publicada na edição impressa de 14/11/2023, foi acrescentada pelos editores do jornal a imagem de um edifício de Habitação e uma legenda que infere que Alvalade, Olivais Norte e Olivais Sul são exemplos da atuação do Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU). Essa informação contém alguns equívocos, nomeadamente, inferir a realização de Alvalade (1945-1947) à atuação do GEU quando este gabinete foi criado apenas em 1954. Ademais, dos estudos de urbanização elaborados pelos técnicos do GEU apenas a urbanização dos Olivais foi concretizada, ainda assim parcialmente sendo Olivais Norte aquele que seguiu o plano concebido pelo GEU.

Sílvio Mendes
Gabinete de Comunicação e Relações Públicas (GCRP)
Instituto Superior Técnico

As emissões de gases com efeito de estufa são o principal contributo antropogénico para as alterações climáticas globais. Devido à sua estrutura molecular, estes gases absorvem a radiação, predominantemente infravermelha, emitida pela superfície terrestre, assim contribuindo para o aumento da temperatura da atmosfera. Destes gases, é o dióxido de carbono que teve até hoje o maior contributo para o aquecimento global, seguindo-se o metano, do qual os processos digestivos dos ruminantes (bovinos, ovinos, caprinos, etc ...) constituem uma das grandes fontes de emissão.

Biologicamente, os ruminantes distinguem-se por terem o estômago dividido em quatro compartimentos. Quando ingerem o seu alimento, este vai para o primeiro destes, o rúmen, uma grande câmara de fermentação. O rúmen alberga uma comunidade microbiana extremamente rica, que tem a capacidade de degradar componentes das plantas como a celulose, transformando-as em compostos que podem ser assimilados pelos animais. Durante a permanência no rúmen, os alimentos vão passando para o segundo compartimento, o retículo, onde é avaliado o seu estado de digestão. Se o alimento presente no rúmen ainda estiver pouco digerido, pode retornar à boca (regurgitação) para ser re-mastigado (aquilo que observamos como o animal a “ruminar”). Caso o alimento presente no rúmen já esteja em estado avançado de digestão, pode passar aos restantes compartimentos do estômago e depois para o intestino delgado.

Devido a este complexo sistema digestivo, nomeadamente a sua componente fermentativa, os ruminantes têm a capacidade de processar alimentos ricos em fibra, dos quais o caso mais relevante são as pastagens. Processam, portanto, alimentos que não poderiam ser diretamente ingeridos por nós, pois não teríamos capacidade de os digerir, transformando-os em carne e leite, que constituem, estes sim, alimento para nós. No entanto, este processo fermentativo é um processo anaeróbio (sem oxigénio), que origina a produção de metano. Assim, a produção de metano pelos ruminantes está intrinsecamente associada à capacidade de digerir alimentos fibrosos, um aproveitamento de recursos que de outra forma poderia não ocorrer.

Para percebermos o efeito ambiental do metano emitido pelos ruminantes, é importante conhecermos a “história química” deste gás. Esta história começa com a fotossíntese feita pelas plantas da pastagem, que retira átomos de carbono da atmosfera, na forma de dióxido de carbono, CO2 (um átomo de carbono e dois de oxigénio), e os transforma nos tecidos da planta. A planta é depois ingerida pelo animal mas, durante a digestão, parte dos átomos de carbono do alimento são transformados em metano, CH4 (um atómo de carbono e quatro de hidrogénio), que se liberta para a atmosfera, onde vai contribuir para a tornar mais quente. Ao fim de 12 anos, em média, sofre uma série de reacções químicas que o vão transformar em dióxido de carbono (é para aqui que vai o seu átomo de carbono) e vapor de água (para onde vão os seus átomos de hidrogénio).

Assim, o metano emitido pelos ruminantes está associado a um ciclo fechado de circulação de carbono, em que todos os átomos de carbono emitidos para a atmosfera na forma de metano foram anteriormente retirados da atmosfera através da fotossíntese. O efeito de aquecimento de todo este processo é exclusivamente devido aos 12 anos que o metano permanece na atmosfera, dado que o efeito do CO2 produzido no final é cancelado pelo efeito do CO2 removido no início. Uma situação diferente, por exemplo, é o caso das emissões de metano associadas à exploração e uso de gás natural (neste momento uma maior fonte de emissão de metano que a digestão dos ruminantes), que têm um duplo efeito de aquecimento: o efeito inicial do metano e, 12 anos depois, o efeito do dióxido de carbono no qual o metano se transformou.

Esta diferença entre o metano de origem fóssil (com um percurso linear dos átomos de carbono entre metano geológico e metano atmosférico) e metano oriundo da fermentação digestiva dos ruminantes (em que os átomos de carbono percorrem um ciclo) tem levado alguns a afirmarem que este último não tem um efeito de aquecimento global. É uma falácia. Não há dúvida que o metano emitido pelos ruminantes tem um efeito de aquecimento, e não há também dúvida que devemos trabalhar para reduzir as suas emissões.

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Na crónica intitulada “Crónica Sobre habitação e memória”, da autoria de Carolina Chaves, publicada na edição impressa de 14/11/2023, foi acrescentada pelos editores do jornal a imagem de um edifício de Habitação e uma legenda que infere que Alvalade, Olivais Norte e Olivais Sul são exemplos da atuação do Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU). Essa informação contém alguns equívocos, nomeadamente, inferir a realização de Alvalade (1945-1947) à atuação do GEU quando este gabinete foi criado apenas em 1954. Ademais, dos estudos de urbanização elaborados pelos técnicos do GEU apenas a urbanização dos Olivais foi concretizada, ainda assim parcialmente sendo Olivais Norte aquele que seguiu o plano concebido pelo GEU.

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Metano dos bovinos: culpado ou inocente?

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21.11.2023

Metano dos bovinos: culpado ou inocente?

A produção de metano pelos ruminantes está associada à capacidade de digerir alimentos fibrosos, um aproveitamento de recursos que de outra forma não poderia ocorrer.

As emissões de gases com efeito de estufa são o principal contributo antropogénico para as alterações climáticas globais. Devido à sua estrutura molecular, estes gases absorvem a radiação, predominantemente infravermelha, emitida pela superfície terrestre, assim contribuindo para o aumento da temperatura da atmosfera. Destes gases, é o dióxido de carbono que teve até hoje o maior contributo para o aquecimento global, seguindo-se o metano, do qual os processos digestivos dos ruminantes (bovinos, ovinos, caprinos, etc ...) constituem uma das grandes fontes de emissão.

Biologicamente, os ruminantes distinguem-se por terem o estômago dividido em quatro compartimentos. Quando ingerem o seu alimento, este vai para o primeiro destes, o rúmen, uma grande câmara de fermentação. O rúmen alberga uma comunidade microbiana extremamente rica, que tem a capacidade de degradar componentes das plantas como a celulose, transformando-as em compostos que podem ser assimilados pelos animais. Durante a permanência no rúmen, os alimentos vão passando para o segundo compartimento, o retículo, onde é avaliado o seu estado de digestão. Se o alimento presente no rúmen ainda estiver pouco digerido, pode retornar à boca (regurgitação) para ser re-mastigado (aquilo que observamos como o animal a “ruminar”). Caso o alimento presente no rúmen já esteja em estado avançado de digestão, pode passar aos restantes compartimentos do estômago e depois para o intestino delgado.

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Para percebermos o efeito ambiental do metano emitido pelos ruminantes, é importante conhecermos a “história química” deste gás. Esta história começa com a fotossíntese feita pelas plantas da pastagem, que retira átomos de carbono da atmosfera, na forma de dióxido de carbono, CO2 (um átomo de carbono e dois de oxigénio), e os transforma nos tecidos da planta. A planta é depois ingerida pelo animal mas, durante a digestão, parte dos átomos de carbono do alimento são transformados em metano, CH4 (um atómo de carbono e quatro de hidrogénio), que se liberta para a atmosfera, onde vai contribuir para a tornar mais quente. Ao fim de 12 anos, em média, sofre uma série de reacções químicas que o vão transformar em dióxido de carbono (é para aqui que vai o seu átomo de carbono) e vapor de água (para onde vão os seus átomos de hidrogénio).

Assim, o metano emitido pelos ruminantes está associado a um ciclo fechado de circulação de carbono, em que todos os átomos de carbono emitidos para a atmosfera na forma de metano foram anteriormente retirados da........

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