António Costa apresentou a sua demissão do cargo de primeiro-ministro em resultado de um comunicado da Procuradoria-Geral da República onde se anunciava a abertura de um inquérito devido à “invocação, por suspeitos, do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido”.

Ou seja, a abertura de um inquérito não se baseou em qualquer indício de comportamento ilícito ou ilegal, mas apenas na invocação do nome do primeiro-ministro por terceiros. No entanto, a divulgação pública que o Ministério Público entendeu fazer sobre essas eventuais declarações de terceiros, sem especificação de atos ou comportamentos praticados pelo primeiro-ministro, foi suficiente para o fazer cair.

Qualquer pessoa medianamente informada sabe, como o sabem o Ministério Público, os seus magistrados e os agentes do sistema judicial em geral, que o anúncio público de abertura de um processo de inquérito provoca graves danos reputacionais, independentemente do resultado desse inquérito, ou seja, independentemente da comprovação ou não de qualquer culpabilidade. Esses danos são mais gravosos para quem atua no espaço público, e ainda mais gravosos para quem exerce cargos políticos, sobretudo para um primeiro-ministro em exercício de funções.

Sabendo isso, por que razão o Ministério Público decidiu provocar estes danos reputacionais a António Costa antes de constituir um processo credível e sólido? Conhecendo bem os efeitos do seu comunicado, porque decidiu o Ministério Público fazê-lo com ligeireza, sabendo que isso iria fazer cair o Governo, antes de construir qualquer acusação, ou mesmo mera suspeição, minimamente fundamentada?

É como se, uma vez mais, estivéssemos perante uma situação de castigo preventivo, uma situação em que a punição antecede e é independente do julgamento. Uma vez mais, mas neste caso com especial gravidade. Se amanhã se comprovar, como acredito que acontecerá, que nada de ilegal ou condenável foi praticado por António Costa, tal será irrelevante porque este já foi castigado. Culpa e castigo foram substituídos por insinuação e punição. Com consequências não só para António Costa como para o país, para o sistema democrático e para a credibilidade das instituições. Sabendo disso, por que razão decidiu o Ministério Público castigar antes de levar a julgamento ou, mesmo, de investigar?

Ironia das ironias, coloca-se em risco o Estado de direito consagrado na Constituição democrática, em que tanta confiança foi depositada, exatamente na véspera dos 50 anos do 25 de Abril.

QOSHE - Castigo preventivo - Maria De Lurdes Rodrigues
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Castigo preventivo

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09.11.2023

António Costa apresentou a sua demissão do cargo de primeiro-ministro em resultado de um comunicado da Procuradoria-Geral da República onde se anunciava a abertura de um inquérito devido à “invocação, por suspeitos, do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido”.

Ou seja, a abertura de um inquérito não se baseou em qualquer indício de comportamento ilícito ou ilegal, mas apenas na invocação do nome do primeiro-ministro por terceiros. No entanto, a divulgação pública que o Ministério Público entendeu fazer sobre essas eventuais declarações de terceiros,........

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