Uma das preciosidades familiares de que mais me orgulho é uma pilha de jornais dos dias seguintes ao 25 de Abril e ao Primeiro de Maio de 1974. “Jornais de Notícias”, na sua maioria, com quase cinquenta anos, conservados pelos meus avós pela sua importância histórica, por pura consciência de que aqueles eram dias marcantes e que havia que preservar, como documentação mas também como amuleto, aquelas publicações. Os jornais que documentam esses dias, escritos já sem a sombra da censura, relatam a intensidade de todos os acontecimentos e trazem fotografias icónicas. A mais bela de todas sai no dia 2 de Maio e mostra a Avenida dos Aliados completamente coberta de gente, naquela que foi a confirmação de que éramos livres para ocupar as ruas, para celebrar a democracia e lutar pelos nossos direitos.

É uma pilha de jornais velhos, presos por um cordel e cobertos por um saco de plástico, mas é uma preciosidade, porque a possibilidade da existência de uma imprensa livre, que documente os grandes e pequenos acontecimentos que compõem a história do país, concretiza uma das mais perfeitas dimensões da nossa democracia, o que faz com que naquelas páginas já amareladas possamos ler a sua evocação simbólica. Naqueles dias era ainda embrionária, hoje está mais madura e também mais desgastada a nossa democracia, mas, sem jornais, nem então nem hoje seria possível falar em liberdade e, por isso, é tão preocupante a sua extinção iminente.

A viabilidade económica da imprensa está ameaçada e é cada vez mais difícil manter as publicações em papel. Os outros meios de comunicação e a internet parecem estar a atirar os jornais para a obsolescência, mas precisamente pela explosão de outros média, cada vez menos escrutinados, manchados por fake news e disseminadores de desinformação (para servir interesses obscuros) é que urge salvar a imprensa séria, livre e independente.

O que é certo é que, para isso, é preciso salvar e valorizar as equipas que a fazem, pagando dignamente os seus salários, dando estabilidade às carreiras e independência para investigar e publicar. Para isso, é preciso que sejamos solidários com os trabalhadores do setor na sua luta contra a precariedade e a desproteção e com os diretores que se batem (ou demitem) para lutar contra ingerências editoriais ou estratégias de gestão que inquinam a qualidade do que é impresso, ou desvalorizam o título e a sua história. É que estas páginas em que escrevo, apesar de centenárias, património do povo e o único exemplo de imprensa escrita, nacional, feita a partir do Porto, estão em risco. Assim como os restantes meios do mesmo grupo. Assim como a revista em que comecei a escrever crónicas (a “Visão”). E mesmo que para os mais cínicos possa parecer apenas uma pilha de jornais, a sua existência é uma verdadeira preciosidade e nela está depositada uma boa parte da nossa democracia.

QOSHE - Uma preciosidade - Capicua
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Uma preciosidade

11 0
09.01.2024

Uma das preciosidades familiares de que mais me orgulho é uma pilha de jornais dos dias seguintes ao 25 de Abril e ao Primeiro de Maio de 1974. “Jornais de Notícias”, na sua maioria, com quase cinquenta anos, conservados pelos meus avós pela sua importância histórica, por pura consciência de que aqueles eram dias marcantes e que havia que preservar, como documentação mas também como amuleto, aquelas publicações. Os jornais que documentam esses dias, escritos já sem a sombra da censura, relatam a intensidade de todos os acontecimentos e trazem fotografias icónicas. A mais bela de todas sai no dia 2 de Maio e mostra a Avenida dos Aliados completamente coberta de gente, naquela que foi a confirmação de que éramos........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play