Depois de décadas como professor na Faculdade de Engenharia do Porto, o meu pai (Manuel Matos Fernandes) deu a sua última aula. Um auditório cheio com amigos, família, colegas, ex-alunos, mais uma multidão online, juntou-se para assistir à sua derradeira lição e homenagear um percurso de grande dedicação à Universidade.

Habituei-me ao longo dos anos a ser abordada por desconhecidos, nos mais variados contextos e locais, que me vinham dizer que haviam sido alunos do meu pai e que ele tinha sido o melhor professor das suas vidas. De todas as vezes fiquei muito orgulhosa, por saber que as suas qualidades (evidentes para mim) eram apreciadas também no âmbito profissional, e feliz por saber que a sua incansável entrega à faculdade era recompensada pelo carinho dos estudantes.

O meu pai trabalhou sempre muito, ficava nervoso com a responsabilidade de dar aulas, mesmo passados tantos anos. Se não estava a lecionar, estava no gabinete disponível para ajudar os estudantes e aconselhá-los, mesmo depois do curso, na busca de emprego, ou quando o consultavam por questões profissionais. Além da sua devoção à docência, trabalhou também muito nas outras dimensões da carreira académica e dedicou-se à FEUP (enquanto instituição) com todo o seu empenho, nos cargos que foi tendo, mas também na preocupação com a sua memória (na preservação do espólio do velho edifício, na mudança para a Asprela, por exemplo) ou com o seu futuro (na criação dos jardins no novo campus, em que plantou dezenas de árvores).

Ver aquela sala cheia, ver o agradecimento público que fez às pessoas que o ajudaram ao longo da sua formação e carreira, ver a interessantíssima aula, sobre a relação entre a nossa engenharia e a história e geografia do país, ver o grande aplauso final e a forma como celebrámos juntos a sua jubilação, foi emocionante. Chorei muito ao ouvi-lo falar da importância do seu irmão Jorge na escolha do seu curso e especialização, dizer que aprendeu com a militância política no movimento “O ensino ao serviço do povo” (nos anos setenta) a valorizar a docência enquanto um sagrado serviço ao estudante, ao vê-lo homenagear as pessoas escravizadas e os operários que ajudaram a construir as grandes obras da engenharia portuguesa, e a falar sobre como a construção do país se fez também pela construção.

Mas a melhor parte foi a surpresa que lhe fizemos depois da cerimónia, inaugurando uma placa comemorativa da sua última aula, no seu lugar favorito no Porto: o café Piolho, onde desde os anos de estudante se senta junto à coluna dourada. O meu pai, feliz com a homenagem, disse entre risos que ter uma placa no Piolho é melhor do que ir para o Panteão. E é! Pois além de poder usufruir-se dela em vida, ainda dá para fazê-lo com uma francesinha e um fino numa mesa cheia de amigos, o que é inquestionavelmente muito melhor do que fazer companhia ao Teófilo Braga.

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A última aula

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21.11.2023

Depois de décadas como professor na Faculdade de Engenharia do Porto, o meu pai (Manuel Matos Fernandes) deu a sua última aula. Um auditório cheio com amigos, família, colegas, ex-alunos, mais uma multidão online, juntou-se para assistir à sua derradeira lição e homenagear um percurso de grande dedicação à Universidade.

Habituei-me ao longo dos anos a ser abordada por desconhecidos, nos mais variados contextos e locais, que me vinham dizer que haviam sido alunos do meu pai e que ele tinha sido o melhor professor das suas vidas. De todas as vezes fiquei muito orgulhosa, por saber que as suas qualidades (evidentes para mim) eram apreciadas também no âmbito profissional, e feliz por saber que a sua incansável entrega........

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