Esta é a minha centésima crónica nas páginas deste jornal resistente, histórico, popular e escrito a partir do Porto. Gosto de imaginar que os cerca de duzentos e oitenta mil carateres que depositei em texto nesta folha de papel, andaram a passear por mesas de cafés, bancos de autocarros, salas de espera de consultórios. Gosto de imaginar esta página, daqui a uns meses, enrolada em cone para servir de cartuxo de castanhas, a embrulhar louça numa mudança de casa ou a servir de matéria-prima para uma aula de artes plásticas. Gosto de imaginar que os jornais ainda são objetos vivos, que passam por várias mãos e, depois de lidos, por vários usos, e gosto de sentir que as minhas crónicas fazem parte desse ciclo.

Nestas cem, tentei passar por vários temas, por várias escalas, vários registos. Falei de mim e do Mundo, de memória e de atualidade, de cultura, de maternidade, de política, de ecologia, de grandes questões e de miudezas, de forma confessional, crítica, irónica e, possivelmente, contraditória. Expus-me, expondo a minha mundivisão e, nem que fosse pelo puro exercício quotidiano de híper-atenção-consciente, em busca do próximo tema, da perspetiva pessoal, da opinião informada, tinha valido a pena. Escrever uma coluna semanal, obriga-me a ser mais sensível ao redor, a observar os dias com olhos de quem procura, a pensar nas coisas como quem busca o ângulo e a exercitar, não apenas o olhar e o pensamento, mas a escrita.

As próximas cem, caso existam, provavelmente darão continuidade a esta tentativa de concretizar os dias em texto, mas prevejo, pelos sinais do tempo, que sejam ainda mais comprometidas com a liberdade que é inerente ao exercício. É que isto de escrever, de opinar, de analisar e criticar é uma ousadia cada vez mais desaconselhada, num Mundo em que os próprios jornais estão em vias de extinção. O debate público é de grande toxicidade, há um entrincheiramento crescente no combate político, mas também nas chamadas “guerras” culturais. Polarizam-se as partes, como se a lógica do eles-vs-nós fosse o diapasão do fórum, e a simples possibilidade de contraditório disparasse o gatilho da animosidade e do contra-ataque.

Por isso mesmo, acho que todos os democratas, pensadores, artistas, cidadãos que estão do lado da liberdade, dos direitos humanos, da defesa das minorias, da paz, do planeta, precisam de falar, escrever, opinar, analisar, criticar, contribuir mais. Criando uma polifonia de vozes e perspetivas que dilua a polarização, num feixe. Fazendo do espaço público mais diverso, plural e partilhado. Contrariando a lógica do consenso/oposição, mostrando que, tal como podemos divergir amigavelmente, mesmo partilhando grandes valores, podemos fazer pontes com quem nos parece distante à partida. Sendo que, para isso, temos de andar mais pelos cafés, pelos autocarros, pelas escolas, pelas salas de espera, como os jornais em papel, e não ficarmos pelo ecrã (que tanto tem achatado a realidade, deixando tudo à superfície).

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02.04.2024

Esta é a minha centésima crónica nas páginas deste jornal resistente, histórico, popular e escrito a partir do Porto. Gosto de imaginar que os cerca de duzentos e oitenta mil carateres que depositei em texto nesta folha de papel, andaram a passear por mesas de cafés, bancos de autocarros, salas de espera de consultórios. Gosto de imaginar esta página, daqui a uns meses, enrolada em cone para servir de cartuxo de castanhas, a embrulhar louça numa mudança de casa ou a servir de matéria-prima para uma aula de artes plásticas. Gosto de imaginar que os jornais ainda são objetos vivos, que passam por várias mãos e, depois de lidos, por vários usos, e gosto de sentir que as minhas crónicas fazem parte desse ciclo.

Nestas cem, tentei passar........

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