Metade de mim era vontade, metade era hesitação. Aceitei com uma condição. Escreveria o disco da Aldina Duarte se ela me ensinasse os segredos dos poemas do fado, se me desse lições sobre as suas regras e estruturas. (O fado é um templo, a Aldina é a guardiã. Como poderia eu adentrá-lo sem que ela me guiasse?) O inverno pode ser longo no Porto e eu estava em pousio. Achei o momento perfeito e começámos o ano menos sós. Em verbo e em verso: aprender, ensinar, escrever, partilhar, construir, letra a letra como quem aprende palavras novas. Metade de mim era espanto, metade responsabilidade. Quadras, quintilhas, sextilhas e as suas variações, diferentes repetições, alexandrinos, versículos, decassílabos. Contar sílabas, acertar as tónicas, respeitar a métrica. A mestra, exigente e rigorosa, teve sempre o condão da escuta sensível e do elogio motivador. Aprendiza, fui evoluindo no ofício, tentando que o respeito pelo cânone não beliscasse a naturalidade das frases, a emoção dos versos, o entusiasmo na missão. Quis imprimir nas letras o ar do tempo, fazer jus à geografia emocional que partilhamos (as árvores, a praia, a palavra, a força, a luta), sendo doce e combativa como ela, sendo franca e absoluta como fado, servindo ambos, mantendo-me fiel a mim própria. (A metade da dádiva é o ganho e, nesse inverno, aqueles poemas salvaram-me muitas vezes). O disco saiu há poucos dias. Metade canto, metade dedos nas cordas. Em cada tema, dueto e diálogo, díade e dança. Dois corpos que se encaixam e enfrentam, ora serena, ora impetuosamente, como as ondas. Ao ouvi-lo, fiquei imóvel, impactada pela interpretação, sorvendo cada verso como quem se reconhece, arrebatada pela coragem da Aldina, pela forma como se expõe desabridamente ao entregar-se ao poema e como consegue ser total, mesmo quando se contém. Metade som, metade silêncio. Harpa, piano, viola, guitarra. Metade poema, metade música, com a Aldina sempre de peito aberto como escultura de proa. Metade de mim é orgulho, metade humildade. Fazer parte deste disco e, com ele, do corpo de trabalho desta fadista singular, criteriosa e de grande honestidade artística, é uma bênção, mas engrandece a deferência, por ter agora mais consciência da sacralidade do fado e da pequenez do meu contributo, diante da dimensão da sua árvore genealógica e da magnitude do seu repertório ancestral. Como no poema do tema “Aprendiza”, fiquei ainda mais certa que “é do velho que nasce o novo” e que é como um elo na corrente da memória, que este disco se acrescenta. Num tempo em que mais de metade é mercado, fazer poesia é metade ingenuidade, metade guerrilha. Fazer arte é metade loucura, metade compromisso. Fazer música é metade teimosia, metade necessidade vital. Ora é nesse limbo que vivemos, ambas, por inteiro. E num mundo em que é há tanta gente, mas é tão difícil sentirmo-nos acompanhados, poder partilhar metade-metade é uma sorte.

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"Metade-metade"

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26.03.2024

Metade de mim era vontade, metade era hesitação. Aceitei com uma condição. Escreveria o disco da Aldina Duarte se ela me ensinasse os segredos dos poemas do fado, se me desse lições sobre as suas regras e estruturas. (O fado é um templo, a Aldina é a guardiã. Como poderia eu adentrá-lo sem que ela me guiasse?) O inverno pode ser longo no Porto e eu estava em pousio. Achei o momento perfeito e começámos o ano menos sós. Em verbo e em verso: aprender, ensinar, escrever, partilhar, construir, letra a letra como quem aprende palavras novas. Metade de mim era espanto, metade responsabilidade. Quadras, quintilhas, sextilhas e as suas variações, diferentes repetições, alexandrinos, versículos, decassílabos. Contar........

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