As próximas décadas reservam-nos grandes transformações e outras tantas surpresas. Uma dessas grandes transformações diz respeito à evolução da sociedade digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade, transgressão e condicionamento, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.

No período de disrupção tecnológica e desintermediação político-institucional que já estamos a atravessar não é fácil estabilizar expectativas e projetar um horizonte de racionalidade à nossa frente, mas é, justamente, por causa de toda esta evidência anárquica e caótica que é urgente montar um estaleiro político-social para a construção das organizações intermédias da sociedade em rede sob pena de tudo se desmoronar á nossa volta, ou, pior ainda, de abrir a porta ao radicalismo e à desordem local.

Nesta travessia vertiginosa, um dos aspetos mais críticos diz respeito à mais do que provável corrosão do carácter. Com efeito, somos, cada vez mais, trabalhadores precários, descartáveis e intermitentes, a relação social fragmenta-se e pulveriza-se a tal ponto que a construção social de territórios-rede inclusivos se torna um imperativo político, social e económico. Neste contexto, a política local deixa de ser um exclusivo do poder local autárquico e a comunidade política local é chamada a participar diretamente com o poder local instituído e ambos podem e devem colaborar estreitamente em nome de uma política nova.

Um aspeto fundamental do acesso a esta política nova diz respeito à natureza e ação direta do ator-rede. Ele é o agente principal desta nova intermediação para a economia digital e o administrador das plataformas colaborativas que aí vêm, em modo de coprodução e cogestão. É, portanto, uma organização que assumirá múltiplos formatos em função das áreas de atividade, mas é, sobretudo, uma organização com inteligência coletiva e capacidade criativa para gerar e gerir espaços colaborativos inovadores e dotados de um simbolismo político e social muito peculiar. Dito de outro modo, a revolução digital, para ser bem-sucedida, necessita de uma interação permanente e convergente entre comunidades virtuais geradas por plataformas digitais nascidas na internet e nos smartphones e comunidades reais geradas por relações sociais nascidas no dia a dia dos contactos e intercâmbios entre produtores e consumidores, serviços, utentes e cidadãos.

Aqui chegados, é preciso não esquecer e não subestimar o facto de que os grupos ainda dominantes têm instrumentos materiais e cognitivos para obter a cooperação alheia na base da sua própria visão do mundo e dos seus interesses, ou seja, importa conhecer muito bem a natureza do processo de cooperação em torno do qual se constroem os territórios pois este processo será fundamental na compreensão das instituições e dos mercados que marcam a vida de uma região. Afinal, aquilo que parece um equilíbrio delicado é um processo de reconhecimento e legitimação da hegemonia e do poder e isto significa, ainda, que há tanto poder detido como poder consentido.

Em boa verdade, todas as organizações intermédias que representam interesses corporativos têm aqui uma oportunidade única de dar o seu contributo para a nova sociedade em rede colaborativa, pois todas elas possuem uma dimensão territorializada dos seus conhecimentos tácitos. Por isso, devemos explicitar e consolidar na boa direção o conhecimento pragmático que os territórios já possuem e estimular o potencial de aprendizagem e inovação coletiva destas organizações da sociedade em rede, bem como a sua interação com a sociedade política mais tradicional.

No plano do conhecimento, a vertigem informativa e a plurissignificação da realidade que ela engendra provocam uma verdadeira agitação na economia da atenção e no nosso sistema cognitivo. Depois da relativa passividade dos livros e dos jornais, da rádio e televisão, é a vez da interação com os écrans, a esfera pública da era digital da sociedade da informação e conhecimento. Hoje, temos muito mais entretenimento e espetáculo e, também, mais cenografia, coreografia e representação. Se quisermos, temos uma alteração radical na esfera pública introduzida pelos meios digitais, uma verdadeira infopandemia feita de consumo, prazer, diversão, ilusão, alucinação e narcisismo.

Na verdade, a racionalidade discursiva cede perante a comunicação afetiva e já não são os contextos e os argumentos que contam, mas os pretextos e as emoções. As notícias falsas rendem muito mais do que os factos. A racionalidade digital seria, assim, uma espécie de vontade geral, um equivalente funcional da vontade geral da democracia político-partidária. Os algoritmos chegam lá sozinhos, a comunicação só atrapalha.

Neste hibridismo de racionalidade humana limitada e racionalidade digital ilimitada, a democracia está em grandes dificuldades, porque é muito lenta e morosa e não se compadece com os ritmos da tecnologia e da vertigem informativa. Ao mesmo tempo, o problema principal da racionalidade digital é a sua apropriação privada e o facto de um somatório de esferas privadas não fazerem uma esfera pública. Não há consenso, convergência entre valores pessoais e sociais. Ou seja, não podemos prescindir da política e do seu compromisso, as desigualdades sistémicas estão lá e não foram eliminadas, embora os cientistas dos dados afirmem que podem prescindir da política.

No plano cognitivo assistimos a uma profunda crise da verdade. Perdemos a fé na própria verdade. O oceano de informação tira-nos o discernimento para avaliar a realidade e a verdade. A sociedade está cada vez mais centrifugada e indiferente à verdade dos factos, uma manifestação patológica da digitalização. As memórias são revistas, o revisionismo funciona quanto baste para as ajustar ao nosso interesse, à nossa verdade, para justificar o presente. A novilíngua faz o mesmo, uma linguagem nova para a digitalização da sociedade, enquanto o vocabulário sofre uma redução radical para impedir o discurso complexo e diferenciado, logo o conhecimento, ou seja, não há aqui nenhuma consistência discursiva ou narrativa.

Aqui chegados, este mundo digital não é sólido, mas liquefeito e não há realidade ou verdade ou factos que resistam a este oceano de informação. Estamos impedidos de alcançar um consenso acerca de uma promessa de verdade, só há ambivalência, contingência, instabilidade. Por tudo isto, criamos um ministério da verdade e teorias da conspiração para manipular, confundir e controlar os cidadãos. No final, temos, de um lado, a política velha, hierárquica, vertical, corporativa, privada e individualista, do outro, a política nova em que o falar verdade é um ato de grande resistência e extrema generosidade, um ato genuinamente político que se distingue pelo compromisso social e pela sua duração que são o significado existencial da verdade.

Da vertigem informativa faz parte a psicometria em que o papel principal é desempenhado pelo smartphone, um dispositivo psicométrico que alimentamos em permanência. Da psicometria para a psicopolítica vai um pequeno passo que o marketing político usa abundantemente ao debitar constantemente as suas notificações.

Do mesmo modo, também o procedimento e o protocolo científico são afetados O verdadeiro processo científico criativo é substituído por um processo convencional, datado, delimitado, circunscrito, transitório, recorrente, porque a decisão estratégica é trocada por uma série de decisões incrementais, circunstanciais, por ajustamentos sucessivos. porque nunca estarão reunidas as condições para tomar uma decisão segura e definitiva. O protocolo científico dá, assim, lugar ao protocolo convencional e ao protocolo processual e procedimental e estes três protocolos estão a tomar conta de quase todas as agendas. Nesta mesma linha de pensamento, a tática e o jogador, substituem a estratégia e o estratega. E ninguém acredita na estratégia porque a estratégia avalia.

A boa nova é que a revolução digital, na sua policromia, é, também, uma excelente oportunidade para refrescar a atividade política tal como a conhecemos. Assim, podemos afirmar, a política convencional, hierárquica e vertical, envelheceu, já não tem o poder de obrigar, está sobrecarregada e, doravante, deve descentralizar uma parte das suas atividades nos novos territórios da sociedade em rede. Em seu próprio benefício, a autolimitação da política velha servirá para a proteger da sua mediania e trivialidade. Ora, a novidade da revolução digital é a emergência das redes colaborativas e a imersão da política nessas redes em consequência de uma clara fadiga da política velha, incapaz de acompanhar o ritmo da política nova. Uma última nota para realçar o nosso individualismo metodológico e cuidar do nosso narcisismo radical, assim como da nossa iliteracia tecnológica e digital. Eles podem ser o grande obstáculo ao regresso do compromisso político e tolher o nosso passo em direção a uma política nova mais refrescante, colaborativa e cooperativa.

QOSHE - Vertigem informativa, agitação cognitiva e corrosão do carácter - António Covas
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Vertigem informativa, agitação cognitiva e corrosão do carácter

6 0
14.12.2023

As próximas décadas reservam-nos grandes transformações e outras tantas surpresas. Uma dessas grandes transformações diz respeito à evolução da sociedade digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade, transgressão e condicionamento, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.

No período de disrupção tecnológica e desintermediação político-institucional que já estamos a atravessar não é fácil estabilizar expectativas e projetar um horizonte de racionalidade à nossa frente, mas é, justamente, por causa de toda esta evidência anárquica e caótica que é urgente montar um estaleiro político-social para a construção das organizações intermédias da sociedade em rede sob pena de tudo se desmoronar á nossa volta, ou, pior ainda, de abrir a porta ao radicalismo e à desordem local.

Nesta travessia vertiginosa, um dos aspetos mais críticos diz respeito à mais do que provável corrosão do carácter. Com efeito, somos, cada vez mais, trabalhadores precários, descartáveis e intermitentes, a relação social fragmenta-se e pulveriza-se a tal ponto que a construção social de territórios-rede inclusivos se torna um imperativo político, social e económico. Neste contexto, a política local deixa de ser um exclusivo do poder local autárquico e a comunidade política local é chamada a participar diretamente com o poder local instituído e ambos podem e devem colaborar estreitamente em nome de uma política nova.

Um aspeto fundamental do acesso a esta política nova diz respeito à natureza e ação direta do ator-rede. Ele é o agente principal desta nova intermediação para a economia digital e o administrador das plataformas colaborativas que aí vêm, em modo de coprodução e cogestão. É, portanto, uma organização que assumirá múltiplos formatos em função das áreas de atividade, mas é, sobretudo, uma organização com inteligência coletiva e capacidade criativa para gerar e gerir espaços colaborativos inovadores e dotados de um simbolismo político e social muito peculiar. Dito de outro modo, a revolução digital, para ser bem-sucedida, necessita de........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play