Há anos, na Fernão Ornelas, assistiu-se em plena luz do dia a uma perseguição a um rapaz que pertenceria ao grupo de “ninjas” que andavam a assaltar casas no Funchal. Tanto quanto me lembro, a fuga percorreu varandas de alguns prédios dessa rua e a população assistia quase incrédula a este espetáculo.

Os comentários começaram por ser muito pouco abonatórios para o ninja. Saltava ele de varanda em varanda, pondo em risco a sua vida e as pessoas gritavam: Bandido! Joga-te!!! Espalha-te p’raí! Andas a roubar os outros e não queres ser apanhado? Joga-te, anda!!! Ladrão!!! Vai mas é trabalhar! Às tantas, o ninja fica com um problema: não havia mais varandas para saltar e escapar! Estava num beco sem saída. Hesita, sem saber para onde se virar. Percebe-se que pensa em saltar para a rua, mas a altura dos prédios não ajuda nessa tomada de decisão. A população percebe o problema e, empaticamente, começa a mudar a sua atitude: Ah, pequeno, tem juízo! Olha a tua mãe, pequeno! Andou ela a criar-te para te jogares agora? Não faças isso! Entrega-te, pequeno! O rapaz acabou por seguir estes conselhos e entregou-se. Não sei o que lhe aconteceu, mas estou convencida de que a população ali presente, com a sua empatia, impediu-o de saltar para o abismo.

As pessoas fazem a diferença nas nossas vidas. Há as que nos tentam afogar e há as que nos puxam sempre para cima. É o que a Rede Europeia Anti Pobreza (EAPN) e o Padre Jardim Moreira têm feito, sem desistirem. Lutam para que não ignoremos o flagelo da pobreza, uma indignidade da condição humana, e nunca abandonam esta causa. No dia 20 de outubro, no Funchal, realizaram o III Forum Regional de Combate à Pobreza e Exclusão Social. Pessoas inscritas e membros dos diversos painéis debateram este gravíssimo problema que na RAM abrange cerca de 30% da população, mesmo que o Presidente do GR insista que são dados mal calculados… Tivemos oportunidade de refletir e ouvir pessoas e instituições que trabalham nesta área, bem como todos os partidos políticos com assento na Assembleia Legislativa da RAM. Algumas coisas ficaram claras:

- Quem é pobre não escolheu sê-lo. As causas da pobreza são estruturais, complexas e afetam as pessoas, deixando-as sem capacidade de reagir no imediato, a médio e a longo prazo. Somos injustos quando julgamos as pessoas por serem vítimas da pobreza;

- Sopa ou um local para dormir não são a solução;

- A pobreza afeta as pessoas que trabalham, as desempregadas, as crianças, os jovens, as idosas e as reformadas;

- População pobre não tem um sindicato que a defenda, mas tem voz. Criemos mecanismos que permitam ouvi-la na construção de soluções;

- Dizer que a pobreza se resolve com emprego é uma falácia. Crianças e jovens não podem trabalhar. Os velhos já trabalharam e não podem voltar a fazê-lo. Muitos dos que trabalham são pobres. Será que a existência do salário mínimo legitima a exploração das pessoas que trabalham?

Durante o forum percebeu-se que erradicar a pobreza é uma questão ética em que todos convergem. No episódio do ninja, são as pessoas que o impedem de saltar da varanda. Temos de nos unir também para ajudar a eliminar a pobreza. Esqueçamos manobras “estratégicas” que criam inimigos externos para esconder os problemas que temos em casa. Construamos políticas públicas com valores humanistas. Encontremos um modelo social e de trabalho justo, que ajude a eliminar esta chaga social. Envolvamo-nos de forma comprometida e honesta nesta luta, porque o que fazemos enquanto vivemos é das poucas coisas que conseguimos controlar nas nossas vidas.

QOSHE - Erradicar a pobreza, uma urgência ética - Madalena Nunes
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Erradicar a pobreza, uma urgência ética

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31.10.2023

Há anos, na Fernão Ornelas, assistiu-se em plena luz do dia a uma perseguição a um rapaz que pertenceria ao grupo de “ninjas” que andavam a assaltar casas no Funchal. Tanto quanto me lembro, a fuga percorreu varandas de alguns prédios dessa rua e a população assistia quase incrédula a este espetáculo.

Os comentários começaram por ser muito pouco abonatórios para o ninja. Saltava ele de varanda em varanda, pondo em risco a sua vida e as pessoas gritavam: Bandido! Joga-te!!! Espalha-te p’raí! Andas a roubar os outros e não queres ser apanhado? Joga-te, anda!!! Ladrão!!! Vai mas é trabalhar! Às tantas, o ninja fica com um problema: não havia mais varandas para saltar e escapar! Estava num beco sem saída. Hesita, sem saber para onde se virar. Percebe-se que pensa em saltar para a rua, mas a altura dos prédios não ajuda nessa tomada de decisão. A população percebe o problema e,........

© JM Madeira


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