Vou falar da fava. Não a do Bolo-Rei, entenda-se. Essa sai sempre ao meu pai que enquanto vivo for paga o bolo, as bebidas e tudo mais que for preciso, só para ver o neto mais velho devorar a iguaria enquanto o diabo esfrega o olho (assumindo que o demo tem olhos, obviamente).

Vou antes falar da fava de Colombo que me veio bater às mãos num dia de maré alta e amotinada que não só atufou o baço areal de algas e de um perfume a iodo como emprestou à costa uma neblina bastarda e misteriosa tal e qual a que costuma pairar em Seven Sisters, por onde já andei noutros invernos bem mais rigorosos que este.

Assim que dei com os olhos naquela semente, redonda, castanha e aveludada, pulei de alegria, não sem antes verificar que apenas a solidão por ali vagueava. Não há necessidade de fazer figuras, ainda por cima, sendo uma recém-chegada. Sentei-me na areia húmida e olhando a amplidão líquida à minha frente, tentei imaginar o entusiasmo de Colombo quando encontrou estas mesmas favas pois este pequenino achado não só confirmou a sua intuição, como impulsionou a partida para outros mundos. E com a fava na palma da minha mão, tal qual um talismã, pensei:

- Aqui estou, mapeando o destino ... e sem sextante, nem astrolábios, nem sequer uma bússola! Porém, e relembrando as palavras de Carlos Mota de Oliveira de que “tudo vai pelos céus e o céu sempre por tocar”, demonstrando que a coremática exige mestria e domínio do seu alfabeto, assosseguei-me e convidando o tempo a demorar-se, continuei o meu passeio matinal, certa de que cabe a cada um decifrar a prosa do mundo.

Já se festejou os Reis numa noite ventosa, um pouco fria, mas muito animada e onde sobressaiu o espírito comunitário. Neste momento, prepara-se o Santo Amaro que também promete trazer movimentação à cidade. E por falar em agitação, lembrei-me das gargalhadas que dei, em plena placa (no Funchal) durante os dias festivos, pois todos os que comigo se cruzavam e ao saber da minha vinda para o Porto Santo, e sem esconder o choque, apenas diziam:

- Olha que em Janeiro não há barco! Uma e outra vez. Todos, sem excepção, numa espécie de slogan publicitário, neste caso, bem mais parecido a uma sentença. Não perguntaram o que vim fazer. Nem se estava a me dar bem. Nem tão pouco onde estava instalada ou até se estava só ou acompanhada. Nada de nada. De poncha na mão e amendoins na outra, apenas repetiam:

-Olha que em Janeiro não há barco!

Aproveito para desejar BOM ANO para todos. Eu, da minha parte, vou me consolando (como dizem os meus amigos das ilhas de bruma). Por aqui passam nuvens de todos os cantos do mundo. Alguns de nós, mantêm o hábito de caminhar pela mão da noite, acatando, o silêncio-incêndio oferecido pelos dias simples. Outros, enroscam-se nas vogais das gaivotas. Outros ainda, guardam na mão o Porto Santo.

A mim, e tal como já vos disse, saiu-me a fava! E que fava!!!

QOSHE - A fava - Cláudia Faria
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A fava

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19.01.2024

Vou falar da fava. Não a do Bolo-Rei, entenda-se. Essa sai sempre ao meu pai que enquanto vivo for paga o bolo, as bebidas e tudo mais que for preciso, só para ver o neto mais velho devorar a iguaria enquanto o diabo esfrega o olho (assumindo que o demo tem olhos, obviamente).

Vou antes falar da fava de Colombo que me veio bater às mãos num dia de maré alta e amotinada que não só atufou o baço areal de algas e de um perfume a iodo como emprestou à costa uma neblina bastarda e misteriosa tal e qual a que costuma pairar em Seven Sisters, por onde já andei noutros invernos bem mais rigorosos que este.

Assim que dei com os olhos naquela semente, redonda, castanha e aveludada, pulei de alegria, não sem antes verificar........

© JM Madeira


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