O conceito de reciprocidade, segundo os mais prestigiados dicionários, aplica-se “a uma situação em que dois agentes se prestam a mesma ajuda ou vantagem”. No que à governabilidade diz respeito, o Partido Socialista manifestou-se recentemente disponível para prestar essa “ajuda” ao PSD, visto que, por princípio democrático, lhe viabilizaria uma vitória de modo a garantir que o apoio do Chega seria evitável. A hipótese, logicamente, só se aplica ao cenário de vitória de Luís Montenegro com uma maioria à direita na Assembleia da República. Tendo o líder do PSD prometido não governar com André Ventura e o PS encarado a extrema-direita como ameaça ao regime, é essa a única possibilidade que, nesse cenário, salvaria ambos da incongruência. Se concordam sobre a ameaça, têm de concordar sobre a governabilidade.

No meu entender e no de algum PS, Pedro Nuno Santos fez muito bem em estabelecer esse compromisso no debate com Montenegro, abandonando a tese que defendera vezes sem conta contra o seu oponente interno (José Luís Carneiro), aquando dos Açores (“nunca trairemos o nosso eleitorado”) ou sobre a mudança em curso no sistema político português (“a direita é um problema da direita”, dizia-se).

Ora, como manifestamente a direita não é só um problema da direita ‒ isto é: o Chega não coloca só desafios ao PSD ‒, os socialistas trocaram momentaneamente a narrativa pela realidade e tomaram a opção responsável: se a direita democrática for a mais votada e não houver uma alternativa maioritária à esquerda, o PS não forçará o PSD a negociar com o Chega. E é essa, aliás, a posição mais coerente com o passado recente do PS: governar à esquerda quando possível; não permitir governar com a extrema-direita, se necessário.

O problema é que os senhores do Rato não resistem à narrativa até quando saem dela. Ao longo da semana, depois de uma performance convincente no Capitólio, Pedro Nuno Santos veio fazer depender o seu compromisso de viabilização de “reciprocidade” da parte do PSD, ou seja, de uma garantia de Luís Montenegro deixar o PS governar mesmo com maioria à direita. Independentemente de as sondagens darem, por agora, esse cenário como distante, vale a pena decifrar o mito da “reciprocidade” que o pedronunismo vem promovendo.

Em primeiro lugar, a ideia de que o partido mais votado deve governar apesar de não ter uma maioria da sua área política ‒ que é o que Pedro Nuno está a exigir ao PSD ‒ é diametralmente oposta àquela que todos os pedronunistas defenderam em 2015, quando o PSD foi o mais votado mas não conseguiu uma maioria de direita no parlamento. Na altura, a tese socialista ‒ largamente balizada pela Constituição ‒ era que a legitimidade para governar emanava da Assembleia e não do vencedor eleitoral.

Por um lado, o PS continua a defender o mesmo quando há maioria à esquerda. Por outro, defende o exato oposto quando há maioria à direita. O resultado é um tanto simples, para não dizer simplista. Para o Partido Socialista, as regras deveriam garantir que o PS governa quase sempre: quando ganha sem maioria à esquerda, quando perde com maioria à esquerda e quando ganha com maioria à esquerda.

Chamar a isso “reciprocidade” será, creio, uma fuga ao significado original da expressão.

Mas, mais do que pela coerência, a pressão para tornar recíproca a promessa de Pedro Nuno é pouco sólida pelo ponto de princípio. O PS viabiliza uma vitória da AD num cenário de maioria à direita, não por respeito ao mais votado, que obviamente não pode evocar, mas para impedir o Chega de influenciar uma governação nacional. Pedir ao PSD que reciproque esse compromisso quereria dizer que na situação inversa ‒ uma vitória do PS com maioria à esquerda ‒, Pedro Nuno preferiria ser viabilizado por Montenegro a ser apoiado pela esquerda; cenário em que nem o próprio certamente acredita.

A partir do momento em que se rejeita a equivalência moral entre os “extremos” de cada centro ‒ em que se afirma que o BE e o PCP têm o direito a integrar acordos de Governo e o Chega não ‒, não se pode exigir “reciprocidade” na forma como cada centro lida com os extremos de cada um. Ou o Chega é um problema diferente dos outros ou têm acesso às mesmas soluções.

O que o PS quer, nos limites que tal também testa, é que o PSD não inviabilize a sua vitória mesmo que não se consiga uma maioria à esquerda. Montenegro não pode assegurá-lo sem, obviamente, insuflar o partido de André Ventura, que se deliciaria a colar o PSD ao PS. Mas Pedro Nuno, que foi maestro e feitor da ‘geringonça’, não pode pedi-lo sem a fatalidade de ser incoerente com o que o próprio representa. Se o mais votado ainda pudesse governar sem uma maioria da sua área política, o seu projeto simplesmente não existiria. Nem sequer teria existido.

QOSHE - A ver se nos entendemos sobre a reciprocidade - Sebastião Bugalho
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A ver se nos entendemos sobre a reciprocidade

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24.02.2024

O conceito de reciprocidade, segundo os mais prestigiados dicionários, aplica-se “a uma situação em que dois agentes se prestam a mesma ajuda ou vantagem”. No que à governabilidade diz respeito, o Partido Socialista manifestou-se recentemente disponível para prestar essa “ajuda” ao PSD, visto que, por princípio democrático, lhe viabilizaria uma vitória de modo a garantir que o apoio do Chega seria evitável. A hipótese, logicamente, só se aplica ao cenário de vitória de Luís Montenegro com uma maioria à direita na Assembleia da República. Tendo o líder do PSD prometido não governar com André Ventura e o PS encarado a extrema-direita como ameaça ao regime, é essa a única possibilidade que, nesse cenário, salvaria ambos da incongruência. Se concordam sobre a ameaça, têm de concordar sobre a governabilidade.

No meu entender e no de algum PS, Pedro Nuno Santos fez muito bem em estabelecer esse compromisso no debate com Montenegro, abandonando a tese que defendera vezes sem conta contra o seu oponente interno (José Luís Carneiro), aquando dos Açores (“nunca trairemos o nosso eleitorado”) ou sobre a mudança em curso no sistema político português (“a direita é um problema da........

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