Não será possível criarmos o futuro sem que no conhecimento de um povo exista sequer o vestígio de como aqui chegámos. Porque quando nos restringimos ao conhecimento só detido pelas elites regredimos para o estado das coisas que Montesquieu já denunciava e que Tocqueville identificou na análise da modernidade de Inglaterra que, desde o século XVII, acolhia já a colaboração interclassista, em que a aristocracia se abria ao talento e o dinheiro levava ao poder, simultaneamente trazendo já a igualdade fiscal, a Imprensa livre e o debate político!

Mas tudo isto, e o mais que da análise dos que ao pensamento iluminado se dedicaram, desde então e até hoje, nada foi trazido ao debate político na campanha para as legislativas de 2024. Como se a História universal e a do nosso país, que a 23 de maio perfará 845 anos da Manifestis Probatum, e, portanto, de evidente nação, fossem questões de somenos, assim como os cinquenta anos sobre o 25 de Abril e, já agora, os quinhentos anos do nascimento do grande, enorme Luís Vaz de Camões e do nosso notabilíssimo dramaturgo Gil Vicente, que até partilha a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan del Ensina – os dois contemporâneos por 12 anos.

Não terá sido fácil, nas circunstâncias políticas e sociais assustadoras que hoje vivemos, trazer ao debate questões que aos mais destacados de nós se apresentam, afinal, como menos urgentes. Mas isso é uma armadilha em que todos eles se deixaram colher e de que, tudo indica, já estavam alheados e em que continuarão a estar enredados. Perdeu a credibilidade política, perdeu o conhecimento e toldou-se a lupa essencial da criação analítica artística; e perdemos todos nós, ficando aqui o lastro do que ainda me recuso a acreditar que virá a ser o futuro da nossa pujante e desprotegida, até solitária criação, inclusive como instrumento da economia, na literatura, no cinema e no audiovisual – que o atual presidente do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), Luís Chaby Vaz, tem procurado organizar, com empenho, mesmo que perante enormes dificuldades, Teatro e Dança, Música e Arquitetura, Pintura e Escultura, e...

 Nenhum candidato fez questão de nos elucidar como vai financiar a Cultura ou como se propõe investir na área. Contudo, ela traduz o nosso passado e define todo o nosso futuro.

Uma dotação orçamental relativa a 1% do PIB é a base da proposta da esquerda – a UE aconselha 2%: essa foi a proposta do BE, PAN, Livre, PCP e PS. Já a AD prometeu aumentar em 50% o valor atribuído à Cultura no último Orçamento do Estado em vigor, ou seja, aumentar um pouco mais do que o já inscrito. Mas sem especificar como.

A Cultura, contudo, não é só financiamento e linhas de crédito. É necessário perceber quem defende a autonomia das instituições culturais, que modelo de gestão, o que se pensa da descentralização dos sectores culturais, que forma orgânica deve ser adotada para a Cultura – por este andar e frente aos resultados ainda poderemos voltar a uma Secretaria de Estado. Mas, se quisermos, de facto avançar, de vez, porque não um Ministério da Cultura e da Ciência: faria todo o sentido, porque as duas áreas sempre foram e são crescentemente sinérgicas – visite-se Leonardo da Vinci.

O que se pensa do estatuto dos profissionais do sector, tão desprotegidos, como se viu durante o período do confinamento. Como agilizar a gestão dos Arquivos Nacionais. Que financiamento e como. A nada disto respondeu a direita.

Nos programas eleitorais do PS e do Livre propõe-se a revisão da Lei do Mecenato cultural de modo que se torne concretizável e com um novo estatuto – é essencial. Mas como e em que medida?

Sobre o cinema e audiovisual em concreto, a AD propõe desenvolver e implementar um Plano Estratégico do Cinema e do Audiovisual. O que quer isto dizer?

À esquerda, o PCP defende o aumento dos apoios públicos ao ICA com mais meios financeiros e humanos – digam-nos como. Também o Livre apoia esta proposta, considerando-se pela primeira vez a possibilidade de taxar os lucros das plataformas de streaming e de Vídeo On Demand (VOD), de forma a diversificar as fontes de financiamento do ICA – acertado mas sem se dedicarem à estruturação das obrigações de investimento directo.

Neste caso, o PS propôs criar mais medidas de incentivo aos operadores privados. Mas exatamente em que medida e com que objetivos?

Relativamente à Cinemateca Portuguesa, apenas o PCP se propôs salvaguardar o caráter integralmente público do instituto.

Falta também falar sobre a RTP. Privatização sim ou não? Já escrevi e defendi que a RTP não deve ser privatizada. Contudo, a possibilidade parece entreaberta, com a IL a defender a privatização da RTP e a AD com uma frase genérica a defender a salvaguarda do seu papel e do serviço público, garantindo a sua independência e transparência. Mas o que significa esta salvaguarda? E a RTP pode servir de moeda de troca? Realmente?!

Em Portugal perdemos a veneração pelo conhecimento, e procuramos afincadamente destruir a economia da Cultura e das Artes, que gera quase 200 mil postos de trabalho – 3,9% da população total empregada – e injecta 4,5 mil milhões na economia.

Uma condução sem pés, sem mãos, e sem lupa.

PS: não poderia deixar em branco este texto sem mais uma vez prestar a minha modesta e sentida homenagem ao António Pedro Vasconcelos que nos deixou há poucos dias.

QOSHE - A cultura da ignorância - José Carlos De Oliveira
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A cultura da ignorância

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13.03.2024

Não será possível criarmos o futuro sem que no conhecimento de um povo exista sequer o vestígio de como aqui chegámos. Porque quando nos restringimos ao conhecimento só detido pelas elites regredimos para o estado das coisas que Montesquieu já denunciava e que Tocqueville identificou na análise da modernidade de Inglaterra que, desde o século XVII, acolhia já a colaboração interclassista, em que a aristocracia se abria ao talento e o dinheiro levava ao poder, simultaneamente trazendo já a igualdade fiscal, a Imprensa livre e o debate político!

Mas tudo isto, e o mais que da análise dos que ao pensamento iluminado se dedicaram, desde então e até hoje, nada foi trazido ao debate político na campanha para as legislativas de 2024. Como se a História universal e a do nosso país, que a 23 de maio perfará 845 anos da Manifestis Probatum, e, portanto, de evidente nação, fossem questões de somenos, assim como os cinquenta anos sobre o 25 de Abril e, já agora, os quinhentos anos do nascimento do grande, enorme Luís Vaz de Camões e do nosso notabilíssimo dramaturgo Gil Vicente, que até partilha a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan del Ensina – os dois contemporâneos por 12 anos.

Não terá sido fácil, nas circunstâncias políticas e sociais assustadoras que hoje vivemos, trazer ao debate questões que aos mais destacados........

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