O exercício da governação implica coerência e transparência nas prioridades. Quando o Orçamento do Estado para 2024 foi apresentado e discutido, Luís Montenegro afirmou que se tratava de um documento “pipi” (sic), “bem apresentadinho e muito betinho que parece que faz, mas não faz”, por ter “impostos máximos e serviços mínimos”. Esta era a opinião do atual primeiro-ministro sobre o Orçamento do Estado que o seu partido, então na oposição, criticou e rejeitou, como seria de esperar face à sua visão alternativa para o país.

Viveu-se, na altura, o estranho calendário que levou a que o Orçamento do Estado fosse apresentado e aprovado com a já anunciada demissão do Governo. Neste momento, há um novo Governo, ao qual desejo as maiores felicidades, o que significa que há um novo olhar sobre o país e opções muito diferentes das que estão plasmadas no OE de 2024. É, pois, incompreensível que, estando-se ainda no primeiro semestre do ano, o Governo AD possa governar sem apresentar um orçamento retificativo.

A AD apresentou-se a eleições com promessas, nalguns casos bastante generosas, com um cenário macroeconómico irrealista, com o compromisso de aumentar a despesa estrutural, que não se alimenta de um excedente orçamental circunstancial, e de baixar a receita. O Governo é agora presidido por quem atacou ferozmente o Orçamento em vigor.

Como cidadão, posso exigir, em primeiro lugar, coerência. Se o orçamento era “pipi”, presumindo que este neologismo signifique que era um mau orçamento, que mereceu a reprovação do PSD, espera-se que seja apresentado um diferente, que permita gerir 2024 de acordo com a visão que a AD tem para o país. O primeiro-ministro não está obrigado, nem se devia obrigar, a gerir com um instrumento, fundamental para a boa gestão do país, que considera errado, que segundo as suas próprias palavras, não serve para fazer nada.

Para além da coerência, é exigível transparência. A aprovação de um retificativo obriga o PSD a ser claro. Para aumentar a despesa estrutural para uns, vai cortar para que outros? Quais são, afinal, as suas opções gestionárias? Esta transparência é devida, em primeiro lugar, aos seus eleitores, que acompanharam a sua visão catastrofista sobre o estado do país, mas também ao Parlamento e aos concidadãos que têm o direito de conhecer onde se encolhe para poder esticar. Até agora só ouvimos o que vai ser dado. É na redução da dívida pública que será o corte? É nalguma administração pública em detrimento de outra? É nas contribuições sociais? Temos o direito de saber.

Ou será que, afinal, o Orçamento não era “pipi” e é o instrumento de gestão em que Luís Montenegro se revê?

No meu entender, o PS deve pressionar para que o Governo apresente uma proposta de orçamento retificativo, em nome da clareza e a bem de um teste à humildade anunciada pelo novo executivo.

No seu discurso de tomada de posse, o primeiro-ministro demonstrou não saber ler os resultados das eleições, avançando com uma subtil estratégia de vitimização: ou se faz como quero ou estão a bloquear-me. Quando os partidos do Governo têm quase exatamente o mesmo número de deputados que o partido que lidera a oposição, o primeiro-ministro tem de se disponibilizar para ter a consciência de que não há via verde e que tem de acolher propostas da sua oposição. E esse primeiro exercício deve estar manifesto numa proposta de orçamento retificativo.

Em 2015, quando iniciou funções, António Costa apresentou as primeiras medidas do seu Governo: aumentar o salário mínimo, eliminar a sobretaxa de IRS, reduzir o IVA da restauração, repor os salários dos funcionários públicos. Bastante distante da alteração de um logótipo, que não parece ser nem o essencial nem o acessório das preocupações dos portugueses.

Se o executivo gerir 2024 sem um orçamento retificativo, está a manifestar que, quando o PSD rejeitou o OE 2024, não fez um chumbo convicto, a ser opaco na gestão ou a assumir tacitamente que valida, por alguns meses, a proposta socialista para Portugal. Sobretudo, estará a tentar evitar que o Parlamento, com a atual complexidade que o caracteriza, se possa pronunciar, fazendo de conta que não é um Governo minoritário e desprezando a representatividade dos partidos da oposição, em particular os da esquerda, e tentando distrair a população com logótipos e quejandos.

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Então, o Orçamento não era pipi?

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09.04.2024

O exercício da governação implica coerência e transparência nas prioridades. Quando o Orçamento do Estado para 2024 foi apresentado e discutido, Luís Montenegro afirmou que se tratava de um documento “pipi” (sic), “bem apresentadinho e muito betinho que parece que faz, mas não faz”, por ter “impostos máximos e serviços mínimos”. Esta era a opinião do atual primeiro-ministro sobre o Orçamento do Estado que o seu partido, então na oposição, criticou e rejeitou, como seria de esperar face à sua visão alternativa para o país.

Viveu-se, na altura, o estranho calendário que levou a que o Orçamento do Estado fosse apresentado e aprovado com a já anunciada demissão do Governo. Neste momento, há um novo Governo, ao qual desejo as maiores felicidades, o que significa que há um novo olhar sobre o país e opções muito diferentes das que estão plasmadas no OE de 2024. É, pois, incompreensível que, estando-se ainda no primeiro semestre do ano, o Governo AD possa governar sem apresentar um orçamento retificativo.

A AD apresentou-se a eleições com promessas, nalguns casos bastante........

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