Quando lemos ou vemos “A História de uma Serva”, corremos o risco de pensar que tudo aquilo é “ficção científica” situada num futuro distópico. Muitos leitores podem pensar assim enquanto mecanismo de proteção. Sucede porém que a misoginia descrita por Atwood não resulta da sua imaginação futurista, resulta da sua investigação histórica. Ou seja, todas aquelas atrocidades aplicadas às "servas", "martas" e "senhoras" já existiram ou ainda existem. A excisão genital feminina é uma prática em muitos países onde se cruzam tradições africanas e tradições muçulmanas; e essa monstruosidade é aplicada a miúdas que vivem aqui na Europa e em Portugal.

Contudo, não pensem que Atwood estava a pensar nessas regiões longínquas com xamãs e mães de santo quando desenhou aquela cena em que Emily, a mais rebelde das servas concubinas, é castigada com a remoção do clitóris. Margaret Atwood estava a pensar no moderníssimo século XIX ocidental. Sim, no século XIX da modernidade e da ciência aqui no ocidente, a excisão genital era uma prática médica e científica desenvolvida pelos homens europeus oitocentistas, os mais misóginos de todos. E, além da excisão do clitóris, sabem qual era a outra solução para a “histeria” feminina aplicada pelos médicos europeus? A masturbação forçada, ou seja, a senhora entrava no gabinete médico e era tocada pelo médico até ao “paroxismo”. Os nossos bisavós e, por arrasto, os nossos avós cresceram numa atmosfera onde isto era concebível.

A masturbação propriamente dita era tabu e reveladora de demências várias, porque o prazer feminino foi diabolizado de acordo com essa mesma ciência. Já a masturbação forçada às mãos de um homem e enquanto mera receita médica, sim, era boa ideia.

Os moderníssimos homens do século XIX, inventores do progresso e não sei quê, também achavam que era boa ideia prender mulheres – mais pobres ou mais impuras – em asilos para serem tratadas à força. Em nome do bem comum, em nome da saúde pública, etc etc etc, a ciência médica desenvolvida por homens prendia mulheres – pobres e/ou “desviantes” - sem qualquer mandato judicial; estas mulheres ficavam presas por tempo indeterminado, sofriam as mais diversas experiências médicas e eram esterilizadas à força. Esta realidade chegou até meados do século XX. Lamento mas Gileade já existiu, chama-se século XIX, o século que alegadamente abriu a modernidade.

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QOSHE - Gileade já existiu: chama-se século XIX - Henrique Raposo
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Gileade já existiu: chama-se século XIX

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23.04.2024

Quando lemos ou vemos “A História de uma Serva”, corremos o risco de pensar que tudo aquilo é “ficção científica” situada num futuro distópico. Muitos leitores podem pensar assim enquanto mecanismo de proteção. Sucede porém que a misoginia descrita por Atwood não resulta da sua imaginação futurista, resulta da sua investigação histórica. Ou seja, todas aquelas atrocidades aplicadas às "servas", "martas" e "senhoras" já existiram ou ainda existem. A excisão genital feminina é uma prática em muitos países onde se cruzam tradições africanas e tradições muçulmanas; e essa monstruosidade é aplicada a miúdas que........

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