Num momento em que toda opinião se banaliza e o vazio viraliza em fibra rápida - mais como eco do diretório partidário do que em forma de dinamite cerebral - importa suster o tempo e tecer sobre os riquíssimos acontecimentos, do processo de eleição da mesa da Assembleia da Républica, sem alarmismos ou néscios dramatismos, temperada análise.

Socorramo-nos, portanto, do compasso histórico. Se na XIII Legislatura (2015-2019) a solidez do diálogo à esquerda derrubou o inefável arco da governabilidade - conforme o delimitou taticamente Paulo Portas por forma a nele se incluir - a força da palavra dada permitiu finalizar uma legislatura, que esculpiu fortíssimas transformações na vida quotidiana dos portugueses. Por sua vez, nos antípodas da expectativa do comentariado, testemunhámos - no decurso do XV exercício (2022-2024) – ao nascimento e morte da primeira maioria absoluta dissolvida, em mão de golpe ou soberba, na nossa ora cinquentenária democracia.

Corolário aristotélico de uma e de outra: a estabilidade alicerça-se muito mais em diálogo e respeito entre pares eleitos, que partilham um subdomínio ideológico mínimo de entendimento programático, conforme a orquestrou o atual secretário-geral do PS, do que na gélida aritmética de um qualquer exército de legítimos mandatos, com a crê o líder da constitucionalmente extinta AD.

No retorno à balburdia, é, pois, plausível aceitar a existência de uma coligação de esquerdas (PS, BE, PCP e Livre) ou de direitas (PSD, CH, IL e CDS), semi-impermeabilizadas pela fina e estéril membrana do PAN.

De forma igualmente lícita, crendo na tese eleitoral plasmada oportunisticamente por Luís Montenegro de que o “não” possa - eventualmente – ser mesmo um não, é plausível a teoria postulada por Rui Tavares: três blocos que atomizem a ultradireita (Chega), a direita democrática e a globalidade da esquerda.

Porém, se a doutrina pode divergir os corolários não são acumuláveis. A admissão simultânea de ambas - em função do mero interesse da minoria absoluta do PSD, composta por somente um terço dos assentos no hemiciclo, é ilógica e risível.

Não existem três geometrias parlamentares funcionais e capazes de conferir estabilidade ao XXIV Governo que, já ferido pela sua própria arrogância será, sem graça, agora divulgado.

Mesmo separando – com presidencial criatividade interpretativa - os conceitos de legitimidade de Governo, representatividade parlamentar e o vasto conjunto de mandatos que se cumprem à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou na sua penumbra e negação, surpreende a ineptidão do PSD em compreender o cenário emanado das eleições de 10 de março ou inegável arrogância com que destratou a totalidade dos mandatos ali representados.

Em regra, não existe uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão. No caso Luís Montenegro nada se perde e pouco se transformará. Em rigor, o projecto do Primeiro-Ministro ora indigitado nunca impressionou ninguém.

Em sentido oposto, rotulado pelos seus detratores como impulsivo ou voluntarioso coube, uma vez mais ao PS, tal como havia feito na noite eleitoral, formular sem tibiezas a solução que poupou Portugal da tentação da direita pelo abismo institucional.

O PS liderará a oposição sem mergulhar na selvajaria formal. Separa-o da direita a mais curta distância de votos de sempre e, simultaneamente, uma enormidade de decência democrática e programática.

Quando a posição não se sustenta a si mesma, mais não lhe resta do que socorrer-se da legitimidade da sua oposição. Em dois dias extraordinariamente intensos, o PS reforçou a sua autonomia estratégica, como ela verdadeiramente se define: respeitando o seu legado fundacionais de grande partido da concórdia nacional, honrando o voto de quem nele confiou e tomando a iniciativa política de formular a solução que permitiu superar a trapalhada em que direita quase emaranhou o parlamentarismo nacional.

Não se proclama como alternativa quem grita mais alto, mas sim aquele quem na escuridão é competente em apontar o bom caminho.

Como cantou José Mário Branco, “num jardim quadrangular à vista do oceano, pode perder-se o olhar na praia do desengano”. Que bom seria que a direita o ouvisse.

QOSHE - Desenganem-se - André Pinotes Batista
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Desenganem-se

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28.03.2024

Num momento em que toda opinião se banaliza e o vazio viraliza em fibra rápida - mais como eco do diretório partidário do que em forma de dinamite cerebral - importa suster o tempo e tecer sobre os riquíssimos acontecimentos, do processo de eleição da mesa da Assembleia da Républica, sem alarmismos ou néscios dramatismos, temperada análise.

Socorramo-nos, portanto, do compasso histórico. Se na XIII Legislatura (2015-2019) a solidez do diálogo à esquerda derrubou o inefável arco da governabilidade - conforme o delimitou taticamente Paulo Portas por forma a nele se incluir - a força da palavra dada permitiu finalizar uma legislatura, que esculpiu fortíssimas transformações na vida quotidiana dos portugueses. Por sua vez, nos antípodas da expectativa do comentariado, testemunhámos - no decurso do XV exercício (2022-2024) – ao nascimento e morte da primeira maioria absoluta dissolvida, em mão de golpe ou soberba, na nossa ora cinquentenária democracia.

Corolário aristotélico de uma e de outra: a estabilidade alicerça-se muito mais em diálogo e........

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