Andava o povo e as elites muito entretidos com as baboseiras demagógicas do Ventura, e o PSD e restante AD com um shakespeariano ter ou não ter Pedro Nuno Santos competência para governar, e o Pedro Nuno Santos a garantir que agora é que ia ser, fazendo tudo o que o PS não fez, inclusive salvar a TAP com a privatização depois de a ter salvo com a «nacionalização», quando um Sábio do Sião (1) teve uma epifania e veio anunciar às ovelhas perdidas a «salvação da pátria»: os círculos uninominais! Parece que foi um sonho de inverno que ele teve. Nunca ninguém se tinha lembrado de tal coisa… excepto, o PS, o PSD, a SEDES, Ribeiro e Castro (o campeão dos círculos uninominais), e mais uma multidão de bem intencionados…

É o delírio total de António Barreto: «Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução, dentro da democracia!». O novíssimo engenheiro eleitoral propõe mudanças radicais (e cada qual a melhor).

As principais alterações:

A criação de «230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado» – de preferência com «duas voltas» garantindo que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos». Isto é, uma pseudo-percentagem, porque fabricada graças à 2.ª volta, onde os candidatos foram reduzidos a dois, à margem dos votos de facto expressos no candidato na 1.ª volta, e sem garantia sequer que o n.º de votos na 2.ª seja superior. Mais legitimidade? Mais representatividade? Haverá mais que dúvidas.

A propositura das listas/candidatos (além dos partidos, um «movimento cívico», um «grupo de defesa do meu bairro ou cidade», um «movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião (???!!!), dos idosos (por onde andará o PSN???), dos doentes», e etc.! Mas bom mesmo seria a proposta do candidato «independente absoluto», «sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições»! Notável. E eles já andam por aí como sabemos das eleições autárquicas. E há muitos, também, nos painéis de comentadores da bola (sem qualquer ofensa) – um era o Ventura até Passos Coelho fazer dele PSD!

A escolha dos candidatos. Pondo de lado a coisa pelos vistos perversa de serem os Partidos, porque em geral (Barreto dixit) são os líderes, A. Barreto defende a generalização de primárias, que como sabemos tem dado tão bons resultados (recordar a 1ª deputada do Livre!). Se forem os partidos, devem ser seleccionados pelas «assembleias dos partidos» (?!) Os partidos (que pelos vistos continuariam a obter a maioria dos deputados eleitos» «teriam de ser muito mais exigentes e seleccionar os melhores, quer do seu ponto de vista como do interesse das comunidades». Porquê? Porque «caso contrário perderiam a eleição». Ingenuidade? Nem o A. Barreto acredita nisto! Porque se escolhe apenas um por círculo? (não esquecer que continua a ser preciso escolher 230 candidatos!). É mais fácil escolher um que 10? Ou na molhada é mais difícil detectar os estúpidos? Fica assim garantida uma qualidade superlativa dos candidatos? Fica por esclarecer quem põe o competente selo de garantia!

As vantagens parecem ser imensas:

Cada português passa a ter «o meu deputado». («O «meu deputado» seria o que fosse eleito, evidentemente, poderia ser ou não ser do meu partido ou daquele em quem votei»), nem que seja o Pacheco Amorim do Chega, que para responder às minhas reclamações vai ter que votar a favor da minha proposta de nacionalizar a EDP e aprovar a Moção contra o racismo e a xenofobia e o fascismo, votar pelo resgate das PPP e contra novas PPP e aprovar o Projecto de Lei para criar boas condições para os emigrantes!

Os partidos deixam de mandar nos deputados, autónomos, independentes, só respondendo perante quem os elegeu, pois «os partidos saberiam que, se não respeitassem os deputados e a sua liberdade, estes poderiam pura e simplesmente informar o eleitorado». Uma interrogação angustiosa: E depois??? Ai que medo, dirão os partidos...

Deixariam de haver 190 deputados, que antes de ser já o eram. Segundo A. Barreto no actual sistema quando se vai para eleições, apresentadas as listas, já há 190 candidatos eleitos – os que foram escolhidos e localizados pelo líder na lista do Partido. No dia das eleições só restam 40 por eleger! Será assim? Estarão os 190 eleitos, mesmo que as suas listas não tenham votos suficientes? Barreto confunde (?) a probabilidade, e mesmo a elevada probabilidade, de certos candidatos pela sua posição na lista e currículo eleitoral do Partido, serem eleitos, com a condição de deputados antes das eleições? Mas não haveria a mesma enorme probabilidade de sabermos antes das eleições em putativos círculos uninominais quem ia ser eleito e tal desmereceria o acto eleitoral?

Deputados conhecidos dos eleitores e responsabilizados perante os mesmos! Segundo Barreto, deixaria no distrito de Lisboa de haver uma «verdadeira sociedade anónima (de 48 deputados) que ninguém conhece»! «O termo “o meu deputado” faria assim sentido para todos os deputados, com responsabilidades pessoais, contas a prestar, mandatos a receber (???), lutas a conduzir e batalhas a travar.» Mas o que impede que hoje os deputados eleitos em lista em círculos plurinominais sejam conhecidos? Que prestem contas? Que tenham responsabilidades? Que conduzam lutas e travem batalhas? É o celebérrimo e nunca assaz invocado problema da ligação dos eleitores aos eleitos. Mas também sem nunca se interrogarem: o que impede os eleitos/deputados no exercício do livre arbítrio das suas funções políticas/parlamentares concretizarem essa ligação? É o paizinho que não deixa? São proibidos pelos partidos? É falta de transporte ou local para se encontrarem com os eleitores? Não são conhecidos e por isso os eleitores não podem chamar por eles quando os vêm na rua… Que tal um letreiro atrás e outro à frente a sinalizar a sua condição de deputado! Mas eles, deputados/eleitos, sabem de certeza absoluta qual é o universo dos seus eleitores. Porque se não lhes dirigem? Porque… não sendo paralíticos, os não procuram… Porque não os convocam para reunir? Daí, para A. Barreto e C.ia, a solução é alterar os círculos eleitorais, para, com força de Lei ou quase, os obrigar, quer queiram quer não a apresentar-se e cuidarem dos seus eleitores e assim não passarem pela vergonha ou medo da comunidade que os elegeu uma 1.ª vez não os torne a eleger (sempre, segundo A. Barreto). O que nem sequer é seguro! Mas não seria muito mais interessante que os eleitores hoje integrassem nas razões para a escolha do seu voto a avaliação de terem ou não os deputados a fazerem por vontade própria, no seu círculo plurinominal, o que se pensa que seria, automático e garantido nos deputados dos uninominais! Haverá dificuldades dos eleitores perceberem tal?

Uma redução significativa da abstenção. A. Barreto anota a evolução, sem dúvida preocupante, do «números brutos» de abstencionistas, que «revelam um profundo mal-estar. De muitas democracias (...)». Da «legitimidade decrescente em tempos de abstenção em permanente aumento (...)». O que não explica é como as suas engenharias respondem ao problema. Até porque as suas soluções podem melhorar (pelo artifício da 2.ª volta) as percentagens porque são eleitos os deputados, mas nada garante, bem pelo contrário, que os n.ºs de votantes engrossem… E nada das outras medidas – escolha e qualidade dos candidatos, propositura por grupos de cidadãos (ver eleições autárquicas), conhecimento/ligação eleito/eleitores, etc – garantem melhores consequências, traduzidas em mais votantes.

A melhoria substancial da legitimidade e representatividade, que o A. Barreto promete é coisa mais que duvidosa, como decorre dos poucos ou nenhuns efeitos eleitorais da sua engenharia para contrariar significativamente a abstenção, e as outras medidas não parecem acrescentar nada de novo neste plano! Aliás, a boa abordagem destes aspectos exigiria que o autor das soluções indicasse a forma pela qual vai delimitar geograficamente os 230 círculos e assim se soubesse a natureza das «comunidades eleitorais» e a dimensão de votantes. Se tivermos círculos identificados com concelhos é uma coisa! Se tivermos círculos derivados de rachar concelhos ou agregar concelhos será outra! A provável tentativa de estabelecer um nº de eleitores, igual ou próximo da igualdade, em cada um dos 230 círculos, até para não agravar mais o problema da proporcionalidade da transformação de votos em eleitos, deve produzir uma divisão do território e logo uma geografia eleitoral muito interessante, que os adeptos dos uninominais ainda não (que se saiba) apresentaram.

Assinale-se que, aparentemente, para A. Barreto a não proporcionalidade votos/mandatos é coisa menor, sem importância, na avaliação da legitimidade e representatividade dos eleitos. E nesse registo nem sequer avança com a proposta, tão cara aos indefectíveis dos círculos uninominais, de um círculo nacional de compensação!

NOTAS:

(1) António Barreto, «Sonho de uma noite de inverno», Público, 20JAN24. Todas as citações referidas no texto pertencem ao artigo.

QOSHE - A salvação da pátria - Agostinho Lopes
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A salvação da pátria

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29.01.2024

Andava o povo e as elites muito entretidos com as baboseiras demagógicas do Ventura, e o PSD e restante AD com um shakespeariano ter ou não ter Pedro Nuno Santos competência para governar, e o Pedro Nuno Santos a garantir que agora é que ia ser, fazendo tudo o que o PS não fez, inclusive salvar a TAP com a privatização depois de a ter salvo com a «nacionalização», quando um Sábio do Sião (1) teve uma epifania e veio anunciar às ovelhas perdidas a «salvação da pátria»: os círculos uninominais! Parece que foi um sonho de inverno que ele teve. Nunca ninguém se tinha lembrado de tal coisa… excepto, o PS, o PSD, a SEDES, Ribeiro e Castro (o campeão dos círculos uninominais), e mais uma multidão de bem intencionados…

É o delírio total de António Barreto: «Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução, dentro da democracia!». O novíssimo engenheiro eleitoral propõe mudanças radicais (e cada qual a melhor).

As principais alterações:

A criação de «230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado» – de preferência com «duas voltas» garantindo que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos». Isto é, uma pseudo-percentagem, porque fabricada graças à 2.ª volta, onde os candidatos foram reduzidos a dois, à margem dos votos de facto expressos no candidato na 1.ª volta, e sem garantia sequer que o n.º de votos na 2.ª seja superior. Mais legitimidade? Mais representatividade? Haverá mais que dúvidas.

A propositura das listas/candidatos (além dos partidos, um «movimento cívico», um «grupo de defesa do meu bairro ou cidade», um «movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião (???!!!), dos idosos (por onde andará o PSN???), dos doentes», e etc.! Mas bom mesmo seria a proposta do candidato «independente absoluto», «sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições»! Notável. E eles já andam por aí como sabemos das eleições autárquicas. E há muitos, também, nos painéis de comentadores da bola (sem qualquer ofensa) – um era o Ventura até Passos Coelho fazer dele PSD!

A escolha dos candidatos. Pondo de lado a coisa pelos vistos perversa de serem os Partidos, porque em geral (Barreto dixit) são os........

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