Fez este domingo 25 anos que uma dita “Intervenção Humanitária” da NATO deu início à destruição de um país na Europa: a Jugoslávia.

Depois de anos a apoiar e a instrumentalizar o terrorismo de um dito “Exército de Libertação do Kosovo”, a intervenção militar directa da NATO à margem da ONU, com o bombardeamento de infraestruturas básicas – energia, água, estações de televisão e até a embaixada da China em Belgrado – e muitas vítimas civis, durou de 24 de Março a 10 de Junho.

Santa hipocrisia! Os que hoje dizem cobras e lagartos do baptismo “operação militar especial” com que a Rússia denominou a invasão da Ucrânia, são os mesmos que então baptizaram a guerra da NATO de “intervenção (ou operação) humanitária”!

Na lembrança está também o apoio do Governo português – de que era 1.º Ministro Guterres – e a participação das Forças Armadas Portuguesas, em claro desrespeito pela Constituição da República e 25 anos depois do 25 de Abril ter alcançado a paz com o fim das guerras coloniais. É pena que os “interesses humanitários” que então justificaram a agressão militar contra um país soberano e independente não levem hoje Guterres, Secretário-geral da ONU – com o respaldo de inúmeras resoluções da ONU –, a exigir uma intervenção militar que ponha fim ao massacre em Gaza, ou pelo menos imponha um cessar-fogo e proceda a adequado apoio às vítimas do terror do Estado de Israel.

Também digno de registo é verificar que em Portugal a comunicação social dominante dita “de referência” não lembre – quando estamos hoje na Europa, no Médio-Oriente e na Ásia-Pacifico perante graves conflitos militares – a agressão da NATO à Jugoslávia, que de facto “inaugurou” a época de aplicação da doutrina imperialista de uma “ordem internacional baseada em regras” ditada pelos EUA.

Comunicação social que mantém hoje a mesma “narrativa”, as mesmas mentiras e falsificações ditadas pelo imperialismo – com todo o apoio da UE – sobre os trágicos acontecimentos de há 25 anos na Jugoslávia. Ver, por exemplo, o texto “A Jugoslávia morreu mas ainda está no meio de nós”, de Amílcar Correia (Público, 10DEZ23), em que a par de abordagens interessantes sobre a boa memória de muitos sérvios sobre a Jugoslávia de Tito peca por omissão na ausência de qualquer nota sobre as causas da “morte” daquele país! Ou mais recente, a entrevista do mesmo jornalista a um Professor universitário de “literacia mediática” (Público, 17MAR24) com o esclarecedor título “Guerra dos Balcãs continua na Wikipédia: Srebrenica foi massacre ou genocídio?”.

Comunicação social sobre a qual continua a pesar, a propósito deste mesmo tema – a destruição da Jugoslávia pelo imperialismo e a UE – um enorme mistério. (1)

A 7 de Março de 2020 foi lançado, no Clube do Sargento da Armada, o livro do Major-General Raul Cunha, Kosovo – A Incoerência de uma Independência Inédita. A obra foi apresentada pelo Major-General Carlos Branco que escreveu: “A publicação deste livro ocorre 20 anos após o dramático bombardeamento da antiga Federação Jugoslava pela OTAN, ação militar decorrente e indissociável do conflito no Kosovo. Seria difícil encontrar pessoa mais qualificada e conhecedora da região para dissertar sobre o tema do que o Major-General Raul Cunha. Estamos perante testemunhos, na sua grande maioria vividos na primeira pessoa, no contacto direto com os protagonistas do conflito. Não se trata da repetição de citações, como acontece frequentemente. Este trabalho resulta de um vasto e profundo conhecimento adquirido no terreno, entre 1981 e 2009, ao serviço da Comunidade Europeia, OTAN e ONU, tanto ao nível táctico, como operacional e estratégico. Este livro condensa essas vivências. O autor encontra-se ainda unido à região por intensos laços familiares e o conhecimento da língua.” (2)

Por sua vez, o Major-General Carlos Branco é autor de A Guerra nos Balcãs – Jihadismo, Geopolítica e Desinformação/Vivências de um Oficial do Exército Português ao Serviço da ONU, livro publicado em 2016 e reeditado em Outubro de 2019. Versando sobre os mesmos acontecimentos, este é um livro que certamente resultou das funções que desempenhou como “observador militar da ONU no conflito da ex-Jugoslávia entre Agosto de 1994 e Fevereiro de 1996. Ainda nesse ano, ao serviço da OSCE, desempenhou as funções de monitor eleitoral nas primeiras eleições realizadas na Bósnia após os acordos de Dayton.”

E a interrogação sem resposta, o mistério insondável: O que leva a que sobre estas obras de dois oficiais generais das Forças Armadas Portuguesas de reconhecido mérito militar e não só, obras resultantes de missões oficiais ao serviço de instituições internacionais como a ONU, NATO, OCSE, UE, tenha caído um silêncio mediático de chumbo, sepulcral? Porquê este silenciamento brutal – na notícia, no comentário no debate – sobre a tragédia dos povos dos Balcãs, sobre a guerra imperialista que foi movida à Jugoslávia na última década do século XX e primeira do século XXI, contada por quem a viveu? Que razões explicam a cegueira e a surdez, o facciosismo e o preconceito de quem povoa o espaço mediático nacional e que tantas resmas de papel, tantas horas de rádio e televisão gastou, e continua a gastar, sobre a morte e o horror na Jugoslávia através da informação das agências noticiosas ao serviço dos agressores? As trevas não se romperam nem em datas redondas do início dos bombardeamentos da Jugoslávia pela NATO, nem na apresentação dos livros, nem pelo conhecimento – não é possível acreditar que não tenha havido leitura pelo menos dos jornalistas que escrevem sobre o assunto – do seu conteúdo desmistificador, esclarecedor, autêntica lavagem da muita mentira, desinformação e propaganda que foi propagada pela generalidade da comunicação social portuguesa. Pelo contrário, continuaram e continuam a repetir todas as atoardas e falsidades, como a do massacre de Srebrenica e sobre Milosevic (3). E pior, repetem a “formatação” da narrativa jugoslava, a mesma que hoje continua a enformar as “narrativas” imperiais sobre outras guerras e conflitos.

(1) Não me cansarei de denunciar este “mistério”. O que de seguida se escreve é com alterações ao texto do artigo “Mistério” publicado n`O Jornal Económico, 17MAR20.

(2) Texto do Convite para a apresentação do livro.

(3) Major-General Carlos Branco, “Com papas e bolos…”, O Jornal Económico, 04MAR24: “Apesar do Tribunal de Haia ter, em 2016, ilibado Milosevic da responsabilidade pelos crimes de que foi acusado, ficou para a história como o “carniceiro dos Balcãs”. O mal já estava feito, pouco ou nada serviu a “retificação.” A verdade histórica apurada à posteriori não produz efeitos retroativos. Não faz breaking news.” Texto onde evidencia como a propaganda adequada permitiu nos acontecimentos da Jugoslávia transformar os sérvios e Milosevic de amigos dos judeus em antissemitas e o contrário com croatas e muçulmanos bósnios – “os presidentes Tuđman (croata) e Izetbegović (muçulmano bósnio) tinham (inclusive) escrito livros onde expressavam ideias muito inconvenientes e inapropriadas.”

QOSHE - “Intervenção humanitária” - Agostinho Lopes
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“Intervenção humanitária”

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25.03.2024

Fez este domingo 25 anos que uma dita “Intervenção Humanitária” da NATO deu início à destruição de um país na Europa: a Jugoslávia.

Depois de anos a apoiar e a instrumentalizar o terrorismo de um dito “Exército de Libertação do Kosovo”, a intervenção militar directa da NATO à margem da ONU, com o bombardeamento de infraestruturas básicas – energia, água, estações de televisão e até a embaixada da China em Belgrado – e muitas vítimas civis, durou de 24 de Março a 10 de Junho.

Santa hipocrisia! Os que hoje dizem cobras e lagartos do baptismo “operação militar especial” com que a Rússia denominou a invasão da Ucrânia, são os mesmos que então baptizaram a guerra da NATO de “intervenção (ou operação) humanitária”!

Na lembrança está também o apoio do Governo português – de que era 1.º Ministro Guterres – e a participação das Forças Armadas Portuguesas, em claro desrespeito pela Constituição da República e 25 anos depois do 25 de Abril ter alcançado a paz com o fim das guerras coloniais. É pena que os “interesses humanitários” que então justificaram a agressão militar contra um país soberano e independente não levem hoje Guterres, Secretário-geral da ONU – com o respaldo de inúmeras resoluções da ONU –, a exigir uma intervenção militar que ponha fim ao massacre em Gaza, ou pelo menos imponha um cessar-fogo e proceda a adequado apoio às vítimas do terror do Estado de Israel.

Também digno de registo é verificar que em Portugal a comunicação social dominante dita “de referência” não lembre – quando estamos hoje na Europa, no Médio-Oriente e na Ásia-Pacifico perante graves conflitos militares – a agressão da NATO à Jugoslávia, que de facto “inaugurou” a época de aplicação da doutrina imperialista de uma “ordem........

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