Sucedem-se a uma cadência fabril, os frente-à-frente televisivos entre líderes dos partidos com assento parlamentar. Nos últimos 20 anos, o país viu partir cerca de 15% da sua população, um caudal constituído por quase 70% de cidadãos com idades entre os 15 e os 39 anos (OE, 2024). É, por isso, natural que temas como o salário mínimo, a habitação, os impostos, a corrupção, a imigração e a emigração ocupem uma fração significativa do tempo de antena. Estão atualmente recenseados cerca de 1,6 milhões de eleitores a viver fora de portas. Como tem sido recorrente – embora já tenham votado 175 000 em 2022 – esperam-se taxas de abstenção elevadas nos círculos da Europa e de Fora da Europa. As raízes deste distanciamento são múltiplas e complexas. O modo como nos referimos aos compatriotas que emigraram ajuda-nos a compreender melhor este fenómeno.

As palavras não servem apenas para designar algo, constroem categorias a partir das quais vemos o mundo. Os discursos não são neutros. Têm repercussões sociais e suscitam formas de pensar e de sentir. As denominações relativas às populações de origem portuguesa a residir no estrangeiro deixam transparecer um conjunto de representações profundamente enraizadas no inconsciente coletivo. Assim sendo, certas pessoas evitam o termo “emigrante”, por considerarem que o seu uso corrente lhe terá conferido um sentido demasiado pejorativo. Outros propõem, pelas mesmas razões, abandonar as designações de “diáspora” (AILD, 2017) ou de “lusodescendente”. Debates de natureza lexical são meritórios, na medida em que nos ajudam a refletir e, eventualmente, a agir sobre a realidade.

No Estado Novo, privilegiavam-se os termos “emigrante” e “colónias portuguesas”, o qual evolui para “comunidades portuguesas” a partir da década de 60. Do ponto de vista dos países de acolhimento, a noção de “comunidade” remete para populações supostamente fechadas sobre si mesmas. Do ponto de vista do país de origem, constitui sobretudo uma forma de afirmar a presença portuguesa no mundo e incentivar a fidelidade às origens. Define-se quase sempre quem vive no exterior em função das aspirações internas. Se percorrermos os discursos oficiais dos anos 1980-90, encontramos uma terminologia diversificada, mas quase sempre unívoca no sentido: mundo de cultura lusitana, portugalidade, Pátria-Mãe, prolongamento do país, modo português de estar no mundo, gente lusitana, lusodescendentes, comunidades de raiz lusitana, núcleos lusitanos, portugueses residentes no estrangeiro, pátria de comunidades, mundo universal português, espaço cultural português ou pátria lusitana, entre outros

Vivemos hoje ainda grudados a uma pretensa “portugalidade” de cariz lusocêntrico, como se todos os portugueses tivessem as mesmas experiências sociais, políticas e culturais independentemente do lugar de residência. Olha-se quase sempre para quem estar lá fora como mero apêndice da comunidade nacional, mas sem igualdade de tratamento. Nas eleições nacionais, os emigrantes alternam entre os votos por correspondência e à distância em função do ato eleitoral, sem que sejam tidas em conta as suas especificidades. Em fevereiro de 2022, quando o Tribunal Constitucional mandou repetir as legislativas nas assembleias de voto do círculo da Europa, Portugal não teve outra saída senão reconhecer a existência de um problema que se arrasta há meio século. Dois anos volvidos, sobram as promessas

A 10 de março é provável que as taxas da abstenção externa ultrapassem os 80%. Voltaremos a ouvir a ladainha de que a abstenção é sobretudo um fenómeno extraterritorial e de que não faz sentido aumentar o número de deputados pela emigração, dado que a maioria esquece na fronteira o seu dever cívico. Por detrás desta alergia ao voto da diáspora, está o receio de que a voz de quem esteja lá fora possa ter demasiado impacto cá dentro. Em vez de procurarem responsáveis pela saída massiva, melhor fariam os partidos em proporcionar condições de vida condignas cá dentro e uma real atenção para quem quis ou teve de partir (continua).

QOSHE - Ei-los que partem, ei-los que (não) votam (1) - Manuel Antunes Da Cunha
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Ei-los que partem, ei-los que (não) votam (1)

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17.02.2024

Sucedem-se a uma cadência fabril, os frente-à-frente televisivos entre líderes dos partidos com assento parlamentar. Nos últimos 20 anos, o país viu partir cerca de 15% da sua população, um caudal constituído por quase 70% de cidadãos com idades entre os 15 e os 39 anos (OE, 2024). É, por isso, natural que temas como o salário mínimo, a habitação, os impostos, a corrupção, a imigração e a emigração ocupem uma fração significativa do tempo de antena. Estão atualmente recenseados cerca de 1,6 milhões de eleitores a viver fora de portas. Como tem sido recorrente – embora já tenham votado 175 000 em 2022 – esperam-se taxas de abstenção elevadas nos círculos da Europa e de Fora da Europa. As raízes deste distanciamento são múltiplas e complexas. O modo como nos referimos aos compatriotas que emigraram ajuda-nos a compreender melhor este fenómeno.

As palavras não servem apenas para designar algo, constroem categorias a partir das quais vemos o mundo. Os discursos não são neutros. Têm repercussões........

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