Dá ainda certo gáudio e gozo ver esta bimilenar cidade de Braga a despertar em manhãs tranquilas e ensolaradas; e, mormente, quando o sol ainda vem longe mas a vida se repercute já no frenesim de gente madrugadora e obreira que se deita com os melros e levanta com os galos, a caminho do trabalho.

Há em todas as coisas – por exemplo, no ritmo cadenciado dos varredores e lavadores de ruas, agora já alguns motorizados, no fanatismo de um qualquer distribuidor de publicidade, porta-a-porta – uma paz e um silêncio que Ientamente, aqui e além, enquanto a manhã cresce, vão sendo quebrados pelo ronronar crescente dos besouros de lata que se vai esparzindo conforme a vida aumenta e alastra.

E uma realidade se evidencia e que é o início da vida citadina que sempre começa bem cedo nos mercados, nos cafés e estações rodoviárias, onde os primeiros clientes são ansiosamente aguardados; porque o tempo não para e tem exigências e ritmos bem capazes de alentar pressas e tergiversações.

Depois, o tempo de todos é oiro que não se compra, trafica ou dá, mas, obviamente, é preciso agarrar e parar, se necessário e preciso for; e sente-se, claramente, essa chã verdade no bulício de homens e máquinas (gruas, escavadoras, tratores, camiões, caterpílares, betoneiras) e, até, na fragilidade com que as últimas névoas da aurora se dissipam e, assim, vão pondo em relevo os contornos difusos dos montes e desfiladeiros lá para as bandas do Sameiro, da Falperra, de Santa Marta das Cortiças e da serra do Carvalho.

Agora, o sol já é rei e brilha e ilumina, porque nos relógios das igrejas são nove horas e pico; e, entretanto, acordam os monstros – camiões, autocarros e automóveis – que em pouco tempo dão cabo, irremediavelmente, disto tudo: desta paz, deste silêncio, deste paraíso paisagístico onde ainda impera o voo cadenciado e bonito da passarada, de árvore em árvore.

Depressa e mal as ruas são prostituídas pela confusão, pelo barulho, pela poluição, por tudo a que certos homens chamam progresso; e nem os pássaros escapam a esta balbúrdia (civilização e progressos, dizem) e dão o fora para outras paragens onde a sua vida que é voar, cantar, apanhar e debicar grãos e fazer filhos a criá-los e a largá-los e voltar novamente ao princípio, lhes não seja tão madrasta.

Agora, aqui na cidade grande, buliçosa, poluída e prostituída de falsa civilização, cada vez mais não vai havendo mais lugar para eles e, muito menos, para o trovadorismo, a poesia e os poetas; e esta verdade faz-nos pensar que certos homens nem sempre fazem as coisas ao jeito das pessoas e do seu desejo, gosto, gáudio e gozo.

Pois é, estes são os homens que desenham, constroem, organizam e governam as cidades que já não são e nunca mais serão de pássaros, trovadores e poetas; até muitas vezes parecem ser encarnações dos hominídeos (cavernícolas) de onde todos procedemos e, por aí, ainda saltassem, de galho em galho, de árvore em árvore e aos guinchos.

Depois, ser trovador ou poeta é ser sensível à Natureza e que, assim, com as coisas mais simples e banais pulsam e rejubilam, como, por exemplo, com o segredo do ovo chocado que vai dar vida ou no silêncio do rebento quer vai crescer e dar árvore ou na ousadia da semente lançada à terra que vai dar o grão, em breve, transformado em pão; e, decididamente, é estar contra os homens que constroem cidades desumanizadas, incaracterísticas, frias, sem poesia, sem alma e nelas metem, à força, os outros homens; é, mormente, saber estar na vida mais com o coração do que com os pés, as mãos, o estômago e a carteira e chamar os outros homens, afinal seus irmãos, para este lado que é o lado onde ainda habita o silêncio, a beleza, a concórdia, a tolerância, a solidariedade, o amor e a paz.

Por isso, meus amigos, é que a nossa cidade que já foi provinciana, maneirinha,

e, sobretudo, de amplos e verdes horizontes, de imensos e fecundos vales e de passarada

alada e rapioqueira, todo encanto, humanidade e a espiritualidade perdeu; e, sobretudo, é que, a partir das nove e pico da noite, já não é quase nada de trovadores e poetas.

Então, até de hoje a oito.

QOSHE - Cidade que já foi de trovadores e poetas - Dinis Salgado
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Cidade que já foi de trovadores e poetas

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29.11.2023

Dá ainda certo gáudio e gozo ver esta bimilenar cidade de Braga a despertar em manhãs tranquilas e ensolaradas; e, mormente, quando o sol ainda vem longe mas a vida se repercute já no frenesim de gente madrugadora e obreira que se deita com os melros e levanta com os galos, a caminho do trabalho.

Há em todas as coisas – por exemplo, no ritmo cadenciado dos varredores e lavadores de ruas, agora já alguns motorizados, no fanatismo de um qualquer distribuidor de publicidade, porta-a-porta – uma paz e um silêncio que Ientamente, aqui e além, enquanto a manhã cresce, vão sendo quebrados pelo ronronar crescente dos besouros de lata que se vai esparzindo conforme a vida aumenta e alastra.

E uma realidade se evidencia e que é o início da vida citadina que sempre começa bem cedo nos mercados, nos cafés e estações rodoviárias, onde os primeiros clientes são ansiosamente aguardados; porque o tempo não para e tem exigências e ritmos bem capazes de alentar pressas e tergiversações.

Depois, o tempo de todos é oiro que não........

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