Antes de César Augusto ter fundado o Império Romano e se ter tornado o primeiro imperador romano, o rio Rubicão marcava a fronteira entre a província romana da Gália Cisalpina ao nordeste e a Itália propriamente dita, controlada por Roma e seus aliados, ao sul. O seu tio-avô Júlio César havia sido nomeado governador de uma região que ia do sul da Gália ao Ilírico. Quando o seu mandato terminou, o Senado ordenou-lhe que dissolvesse o seu exército e voltasse a Roma. Júlio Cesar não aceitou e em janeiro de 49 a.C. liderou a Legio XIII, ao sul sobre o Rubicão, para chegar a Roma, infringindo deliberadamente a lei do imperium e tornando o conflito armado inevitável, pois, como era ilegal trazer exércitos para a Itália, cuja fronteira a norte era marcada precisamente pelo rio Rubicão, cruzar o rio com armas era sinônimo de insurreição, traição e declaração de guerra ao Estado. Segundo Suetónio, foi quando pronunciou a famosa frase “alea iacta est” (os dados estão lançados) antes de cruzar o rio, que sobreviveu para se referir a qualquer indivíduo ou grupo que se compromete irrevogavelmente com um curso de ação arriscado ou revolucionário, semelhante à frase moderna "passar do ponto sem retorno".

A ação levada a cabo pelos militares no dia 25 de abril de há 50 anos atrás assemelha-se à travessia do Rubicão, no sentido histórico que se foi fixando. Naquela madrugada terão pensado que “a sorte está lançada” e, sem quaisquer certezas de vitória, lançaram-se na Grande Aventura, arriscando as suas próprias vidas e uma prisão quase eterna, contra um Estado ditatorial, enredado em si próprio, isolacionista do “orgulhosamente sós” e envolvido numa guerra colonial insustentável. Mas, ao contrário da epopeia de Júlio César, cujo objetivo era a conquista do poder e tornar-se “dictator” como veio a designar-se, a ação de abril de 74 trouxe o que de politicamente mais importante pode ser a aspiração de um povo, a democracia. É claro que trouxe a liberdade, a melhoria das condições económicas e sociais, o sns, a progressão para a igualdade de direitos, o poder local. Mas tudo isso decorre da consagração do sistema democrático, aquele em que o povo, com o poder atribuído igualmente para todos de um voto, pode livremente escolher quem o vai governar e representar no local das mais importantes decisões, o Parlamento.

Não há lugar a saudosismos do passado político, pois ninguém deve pretender que haja melhor sistema de convivência política que a democracia. Nunca se ignore o 25 de abril como princípio da democracia e não se faça como o líder da aldeia gaulesa mais famosa do planeta criada pelo génio de Uderzo & Goscinny, para quem, em puro estado de negação, a Batalha de Alésia – na qual, no ano de 52 a.C., os Romanos liderados por Júlio César, apesar de estarem em número francamente inferior, venceram os Gauleses liderados por Vercingetórix – nunca aconteceu.

É de rejeitar as propostas que pretendem que as comemorações do 25 de abril próximas sejam associadas ao 25 de novembro de 1975. É certo que a intentona do 11 de março de 1975 inverteu o caminho democrático que abril consagrou, procurando impor uma ditadura de extrema-esquerda comunista e que o 25 de novembro recuperou a via da democracia. Mas o 25 de abril de 1974 vale por si próprio, foi nesta data que se implementou a democracia em Portugal e por isso não podem restar dúvidas que a devemos celebrar com a autonomia e a dignidade que se justifica.

Percorro o texto de José Igreja Matos, o bracarense que é presidente do Tribunal da Relação do Porto e que presidiu à União Internacional de Magistrados, publicado na Revista Julgar e intitulado “Perpétuo Abril”. Recorda-nos dois enormes poetas portugueses. De Sophia de Mello Breyner lê-nos; “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo. De Jorge de Sena lembra-nos as cores da liberdade: “Quase, quase cinquenta anos/ reinaram neste país/e conta de tantos danos, / de tantos crimes e enganos, /chegava até à raiz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver/o dia do despertar! /Tantos sem poder saber/com que letras escrever, /com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha.”

Viva a democracia!

QOSHE - 25 de abril: a travessia do Rubicão - Carlos Vilas Boas
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25 de abril: a travessia do Rubicão

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19.04.2024

Antes de César Augusto ter fundado o Império Romano e se ter tornado o primeiro imperador romano, o rio Rubicão marcava a fronteira entre a província romana da Gália Cisalpina ao nordeste e a Itália propriamente dita, controlada por Roma e seus aliados, ao sul. O seu tio-avô Júlio César havia sido nomeado governador de uma região que ia do sul da Gália ao Ilírico. Quando o seu mandato terminou, o Senado ordenou-lhe que dissolvesse o seu exército e voltasse a Roma. Júlio Cesar não aceitou e em janeiro de 49 a.C. liderou a Legio XIII, ao sul sobre o Rubicão, para chegar a Roma, infringindo deliberadamente a lei do imperium e tornando o conflito armado inevitável, pois, como era ilegal trazer exércitos para a Itália, cuja fronteira a norte era marcada precisamente pelo rio Rubicão, cruzar o rio com armas era sinônimo de insurreição, traição e declaração de guerra ao Estado. Segundo Suetónio, foi quando pronunciou a famosa frase “alea iacta est” (os dados estão lançados) antes de cruzar o rio, que sobreviveu para se referir a qualquer indivíduo ou grupo que se compromete........

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