Manuel Silva era o comandante da Bula, a chaimite que retirou Marcello Caetano do Quartel do Carmo. Eram cerca das 19h30 do 25 de Abril de 1974 quando o então Presidente do Conselho se rendeu com garantia de segurança. Abandonou o Carmo e seguiu para o quartel da Pontinha, onde estava instalado o posto de comando das forças armadas revolucionárias. Milhares de pessoas gritavam “mata, mata, mata”, mas o chefe do governo deposto manteve sempre a compostura. “Foi durante todo o trajeto com muita dignidade. Via-se que era um verdadeiro estadista. Ia muito calado, sereno, ao contrário dos outros dois ministros, que iam aterradinhos de medo”, contou Manuel Silva. A única frase que lhe dirigiu, ao entrar, foi: ‘é a vida´.

Uma expressão portuguesa, uma expressão universal, escreveu no Observador Ana Eduardo Ribeiro, que continua: “Lembremos a música do Frank Sinatra, That´s life… That’s all the people say… Com altos e baixos lá vamos todos vivendo a vidinha. Umas vezes felizes, outras tristes, esperançosos e desgostosos, a vida é tão mais colorida quanto mais experiências vivemos. Se à primeira vista, esta expressão pode soar a resignação com teor amargo, não deixa de revelar uma capacidade de relativizar, de aceitação dos tais movimentos ascendentes e descendentes. Frase de gente madura e com experiência de vida acumulada”.

O que surpreende em Marcello é que, sendo possivelmente o expoente máximo do direito público administrativo da segunda metade do século XX, não compreendesse a necessidade de democracia e o fim da guerra colonial que perpassava manifestamente no povo português. Saber sair a tempo, aceitar ser substituído por alguém mais novo, mais capaz de enfrentar os novos desafios, é uma grande virtude. E esse erro de Caetano levou à revolução. Em Espanha Franco, pelo menos, percebeu a questão e nomeou D. Juan Carlos como seu sucessor, embora só depois da sua morte, como veio a acontecer.

A resignação, característica do povo da “saudade”, não deve guiar-nos. É verdade que há imponderáveis que todos uma ou outra vez temos de enfrentar, a que não demos causa, que não sabemos o porquê de acontecerem. Mas há princípios pelos quais temos de batalhar, irresignáveis, um “Não ao pessimismo estéril” de que nos fala o Papa na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium e que elabora no capítulo II - na crise do compromisso comunitário.

É a vida, poderia ser uma expressão de Pinto da Costa face à expressiva derrota para André Villas Boas nas eleições para presidente do FC Porto, após 42 anos na cadeira do poder quase absoluto. Jorge Nuno poderá ter sofrido do que os teóricos classificam de “Síndrome de S. Jorge aposentado”. A sua força foi construída pela união dos portistas em torno da “guerra” contra Lisboa. Mas ao contrário do Santo, que depois de derrotar o dragão, deu a tarefa por terminada, o rei dos dragões do Norte, mesmo depois de vencer o confronto, manteve a mesma luta inglória que a maioria sabia ter terminado.

O que nos transporta para a tarefa da construção da autonomia e valorização do Poder Local, que é um valor político da qual os cidadãos não devem abdicar, uma das maiores conquistas da democracia e da Constituição de 1976 e que não se faz contra ninguém, não é um combate entre o Norte ou as províncias contra Lisboa, mas um processo de desenvolvimento do país que beneficia todos.

Programaticamente, os partidos defendem a regionalização, sem a qual o poder local não se afirma em toda a sua plenitude. Mas tarda em concretizar-se, de passar do papel para a realidade. Nota-se um desinteresse dos partidos em abordar o tema. Na recente campanha eleitoral passou despercebido. No programa político para as recentes eleições, o PSD apenas refere a necessidade de “aprofundar o processo de descentralização municipal e intermunicipal”, sem mencionar a regionalização. Também no programa do PS não existe uma palavra sobre regionalização.

O pais precisa na sua organização político-administrativa de um plano intermédio entre as autarquias e o governo, que as comunidades intermunicipais não asseguram. Os partidos não querem a regionalização, pelo menos para já, mas não podemos nos acobertar na regra “é a vida”. É aos eleitores que cumpre exigir do poder político o avanço para a regionalização efetiva. É a vida, mas com regionalização.

QOSHE - É a vida - Carlos Vilas Boas
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É a vida

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01.05.2024

Manuel Silva era o comandante da Bula, a chaimite que retirou Marcello Caetano do Quartel do Carmo. Eram cerca das 19h30 do 25 de Abril de 1974 quando o então Presidente do Conselho se rendeu com garantia de segurança. Abandonou o Carmo e seguiu para o quartel da Pontinha, onde estava instalado o posto de comando das forças armadas revolucionárias. Milhares de pessoas gritavam “mata, mata, mata”, mas o chefe do governo deposto manteve sempre a compostura. “Foi durante todo o trajeto com muita dignidade. Via-se que era um verdadeiro estadista. Ia muito calado, sereno, ao contrário dos outros dois ministros, que iam aterradinhos de medo”, contou Manuel Silva. A única frase que lhe dirigiu, ao entrar, foi: ‘é a vida´.

Uma expressão portuguesa, uma expressão universal, escreveu no Observador Ana Eduardo Ribeiro, que continua: “Lembremos a música do Frank Sinatra, That´s life… That’s all the people say… Com altos e baixos lá vamos todos vivendo a vidinha. Umas vezes felizes, outras tristes, esperançosos e desgostosos, a vida é tão mais colorida quanto mais experiências........

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