Há sempre uma linha que separa, nas pessoas que ocupam cargos públicos, o cidadão do político. Há uma dimensão pessoal e outra institucional, uma persona pública e outra privada.

Marcelo Rebelo de Sousa, o professor universitário, antigo governante, comentador de política e assuntos vários, ex-jornalista e diretor de jornal, e Marcelo Rebelo de Sousa eleito e reeleito, por sufrágio direto, Presidente da República.

Marcelo Presidente quis e conseguiu dessacralizar a presidência. Mandou arejar o palácio, dizem que literalmente, levou para Belém exatamente a mesma pessoa que era antes de ter sido eleito. Quis ser popular, afetuoso, estar próximo, dizer presente em todas as situações. Foi o primeiro a chegar a catástrofes e acidentes, esteve no posto de comando quando os incêndios ainda lavraram, é o primeiro a comentar o resultado da seleção nacional, ainda antes do selecionador. Dá entrevistas em tronco nu, mantêm o mais possível as rotinas que tinha antes, vai mergulhar pela manhã na praia de sempre, em Cascais.

Marcelo quis que se fundissem as duas personas . Ele é ele em qualquer circunstância, é o que está na sua natureza.

Apesar do país político e dos comentadores acharem que o presidente "fala demais", Marcelo parece não se importar com isso, a menos que, por razões táticas, lhe dê jeito ficar em silêncio. É raro, mas acontece.

Ora, ao dessacralizar a presidência, Marcelo, que queria ser visto como um homem comum, um de nós, mostrou ao país que se pode ser presidente de uma outra forma. E foi ele, com esta decisão, que abriu a porta a que os cidadãos o tratem assim, como se ele fosse um de nós, ou mais um apenas.

Acontece que não é. Marcelo Rebelo de Sousa é o Presidente da República.

As imagens deste domingo, diante do Palácio de Belém, onde decorria uma manifestação pró Palestina e contra as declarações de Marcelo no bazar diplomático, dois dias antes, mostram que há portugueses que aprenderam bem a lição do professor e se acham iguais a ele. Um dos manifestantes, de dedo em riste, a falar a centímetros da cara d o Presidente, em tom exaltado e insultuoso, sem deixar que o interlocutor, sequer, pudesse expressar-se, é a prova de que se esbateu de tal forma a linha que separa o homem do presidente e, portanto, quase tudo é permitido. Ainda não estou certo se a ida de Marcelo à manifestação, que também era contra ele é coragem ou loucura. Ou as duas coisas. Nos últimos meses, vezes demais, Marcelo tem sido obrigado a vir esclarecer, explicar, justificar declarações que faz em público. Seja por causa do decote de uma lusodescendente, seja por causa do número de casos de pedofilia na Igreja Católica, seja pela conversa que teve no tal bazar diplomático, com um representante da autoridade palestiniana. Levada ao extremo, a dessacralização do exercício da presidência da república leva a que muitos portugueses tenham perdido o devido respeito ao Presidente. Não se trata do "respeitinho é muito lindo", trata-se apenas do respeito devido à função e, por arrasto, ao seu titular

Num tempo de extremismos exacerbados, onde se confunde a razão com gritaria, direito à opinião com insulto, discordância com animosidade, convém não esquecer que o Presidente da República é o eleito mais representativo dos portugueses, precisamente porque a sua eleição é uninominal. E. mesmo quem discorda das palavras e atos do presidente, deve ter presente que sim, por mais que custe, é ele que nos representa.

Não acredito que a dois anos e pouco do fim do segundo mandato, Marcelo altere a sua postura. E, mesmo que o fizesse, se isso teria qualquer efeito prático. Tendo a considerar que Marcelo ter enfrentado os que se opunham é mais coragem do que loucura. Outros presidentes em situação semelhante teriam ficado isolados no palácio, sem agenda pública durante vários dias, até que a poeira assentasse. Marcelo embateu de frente contra os críticos, procurando explicar-se. E, quanto mais não fosse por isso, a atitude merece respeito.

Jornalista

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Onde acaba Marcelo e começa o Presidente

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07.11.2023

Há sempre uma linha que separa, nas pessoas que ocupam cargos públicos, o cidadão do político. Há uma dimensão pessoal e outra institucional, uma persona pública e outra privada.

Marcelo Rebelo de Sousa, o professor universitário, antigo governante, comentador de política e assuntos vários, ex-jornalista e diretor de jornal, e Marcelo Rebelo de Sousa eleito e reeleito, por sufrágio direto, Presidente da República.

Marcelo Presidente quis e conseguiu dessacralizar a presidência. Mandou arejar o palácio, dizem que literalmente, levou para Belém exatamente a mesma pessoa que era antes de ter sido eleito. Quis ser popular, afetuoso, estar próximo, dizer presente em todas as situações. Foi o primeiro a chegar a catástrofes e acidentes, esteve no posto de comando quando os incêndios ainda lavraram, é o primeiro a comentar o resultado da seleção nacional, ainda antes do selecionador. Dá entrevistas em tronco nu, mantêm o mais possível as rotinas que tinha antes, vai mergulhar pela manhã na........

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