O mantra criado por António Costa para, durante oito anos, justificar a manutenção em funções de ministros e secretários de Estado até serem arguidos ou formalmente acusados de algum tipo de crime ou ilegalidade, caiu-lhe em cima com toda a força na manha de terça-feira da semana passada. Em poucas horas, o primeiro-ministro resolveu a crise, apresentando a demissão. Não usou, para si próprio, a mesma grelha de avaliação que teve em cima da mesa para os outros. Ao deixar as funções antes ainda de, sequer, lhe ser sido aberto um processo, fez o que devia ter feito. Pena é não ter sido capaz de perceber que, para os outros, a grelha de análise e a exigência deveria ter sido a mesma. Ao querer salvaguardar a dignidade do cargo de primeiro-ministro, o primeiro-ministro retirou, por isso, dignidade aos outros cargos, seja de secretário de Estado, ministro ou alto dirigente público. Os outros podem viver com processos e acusações, eu não.

Costa não deixa S. Bento por causa do fatídico último parágrafo do célebre comunicado do gabinete de comunicação para as redações. Costa deixa o cargo porque se sentiu encurralado pelos atos dos seus mais próximos, que foram escolha direta e pessoal dele mesmo. Quando as buscas chegam à sala ao lado do gabinete do primeiro-ministro, e aparecem mais de 70 mil euros em notas, devidamente escondidos em caixas de vinho e livros, quando o seu "melhor amigo", a quem recorreu sempre que entendeu necessário para que este negociasse em nome do Governo e tratasse de assuntos de Estado, estava no centro de todo este processo, precisamente porque tinha acesso "a Deus", Costa não tinha como sair bem deste filme próprio de um qualquer país da América Latina.

Dois dias depois da demissão, Costa utiliza S. Bento e a função, que mantém, ainda, na plenitude, para descartar mais um amigo e para se confessar traído pelo chefe de gabinete. Enquanto tenta justificar a comunicação ao país como forma de serenar os investidores e acalmar o bruá internacional, aproveita para condicionar a Justiça e o seu curso, fazendo a sua defesa pública ainda antes de ter sido notificado de qualquer processo.

Costa deixa o cargo porque se sentiu encurralado pelos atos dos seus mais próximos, que foram escolha direta e pessoal dele mesmo.

Desta vez, a Justiça entrou pela política adentro e fez cair um primeiro-ministro com maioria absoluta. Teremos de esperar, infelizmente demasiado tempo, para sabermos se Costa vai mesmo ser acusado ou se, pelo contrário, os indícios e suspeitas não passam disso mesmo. Depois, se Costa sair ileso de tudo isto, será a vez de a política entrar na Justiça. Por estes dias, talvez Costa se tenha lembrado muito de Rui Rio e da necessidade de reformas urgentes na Justiça. E talvez tenha dado alguma razão a Sócrates e à narrativa da teoria da conspiração do MP.

A lentidão da Justiça não tem apenas a ver com os prazos processuais, a complexidade das investigações e de produção de prova, os recursos e outros truques dilatórios que vão aparecer mais lá à frente no processo. O tempo vagaroso - e vergonhoso - da Justiça também tem a ver com a falta de condições dos tribunais, a falta de funcionários judiciais, o excesso de processos e a falta de capacidade de resposta do sistema. Ou seja, tal como Sócrates se queixou das condições em que cumpriu a prisão preventiva, Costa queixa-se de que não será candidato a mais nenhum cargo político porque espera um processo muito longo. Era ele, enquanto primeiro-ministro, que tinha de cuidar do bom funcionamento da máquina judicial, para que a Justiça fosse mais rápida e mais eficiente. No fundo, está a queixar-se de si próprio. A Justiça foi uma das áreas mais negligenciadas na última década.

No jogo de palavras, no "à Justiça o que é da Justiça" e "à política o que é da política", a desresponsabilização ganha espaço. O poder político não pode, nem deve, meter-se nas investigações e julgamentos, mas tem o dever de dar ao setor todos os meios para que possa fazer-se Justiça.

Jornalista

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À Justiça o que é da política (ou será à política o que é da Justiça?)

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14.11.2023

O mantra criado por António Costa para, durante oito anos, justificar a manutenção em funções de ministros e secretários de Estado até serem arguidos ou formalmente acusados de algum tipo de crime ou ilegalidade, caiu-lhe em cima com toda a força na manha de terça-feira da semana passada. Em poucas horas, o primeiro-ministro resolveu a crise, apresentando a demissão. Não usou, para si próprio, a mesma grelha de avaliação que teve em cima da mesa para os outros. Ao deixar as funções antes ainda de, sequer, lhe ser sido aberto um processo, fez o que devia ter feito. Pena é não ter sido capaz de perceber que, para os outros, a grelha de análise e a exigência deveria ter sido a mesma. Ao querer salvaguardar a dignidade do cargo de primeiro-ministro, o primeiro-ministro retirou, por isso, dignidade aos outros cargos, seja de secretário de Estado, ministro ou alto dirigente público. Os outros podem viver com processos e acusações, eu não.

Costa não deixa S. Bento por causa do fatídico último........

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