A praxe portuguesa do primeiro século de parlamentarismo, associada depois às conveniências da nossa longa ditadura, acabou por induzir uma realidade: o governo tem uma margem relativamente confortável de criação autónoma de regras, sem ter de se submeter às agruras do debate e da decisão parlamentar. Grande parte das decisões e das matérias que, em vários países europeus, são da responsabilidade de um parlamento, não saem necessariamente, entre nós, da esfera autónoma do governo, que legisla nelas em pé de igualdade com aquele órgão que deteria o poder legislativo por excelência. A democracia, com a sua experiência também já longa de maiorias absolutas e de coligações pré-eleitorais, que trouxe desde os anos 80, manteve igualmente esse sentido.

No entanto, existem elementos decisivos que dependem forçosamente de uma aprovação do parlamento, pragmaticamente com os orçamentos do Estado à cabeça, mas prolongando-se por um elenco em que se incluem as matérias de direitos, liberdades e garantias ou as alterações no direito penal e no processo penal, as regras sobre arrendamento, os estatutos judiciários ou os regimes eleitorais, a título de exemplo.

E, entretanto, logo no início desta semana, percebeu-se bem o nível de indisponibilidade e de tensão que vai marcar o funcionamento do parlamento nesta legislatura. Com dois partidos com 78 deputados, um outro com 50 – que só ganha com o ruído e com o entravar de decisões – e vários outros, de menor dimensão, com igual assento parlamentar, com programas eleitorais naturalmente distintos, mas também alternativos e não conjugáveis, ao novo governo não resta muito mais do que procurar aproveitar a margem de autonomia que a Constituição lhe dá. Sabendo que vir a depender do parlamento lhe retira, mais do nunca, tempo, previsibilidade quanto a um resultado final e capacidade de condução e de coordenação paralela de processos políticos e normativos diferentes e que provavelmente ganhariam num mínimo conjugado de coerência.

Assim, pode bem acontecer que o nosso futuro, só mais imediato ou mais distendido no tempo, seja na verdade preenchido por um exercício quase próprio de um governo em mera gestão. Isso só o Presidente da República poderá, querendo, procurar solucionar. Um governo aprisionado em si, entretido a gerir serviços da administração e a mudar pessoas, mas fortemente limitado em tudo o que implique longo prazo ou careça de um acordo mais estável e alargado no parlamento. Tudo anuncia, portanto, que a atual solução de governo seja, mais do que instável, estruturalmente incapaz. E incapaz desde logo de cumprir as suas próprias promessas – a não ser aquelas que signifiquem apenas despejar dinheiro sobre alguns problemas, algumas profissões ou algumas notícias que surjam nas televisões.

QOSHE - O novo governo de gestão - Miguel Romão
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O novo governo de gestão

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30.03.2024

A praxe portuguesa do primeiro século de parlamentarismo, associada depois às conveniências da nossa longa ditadura, acabou por induzir uma realidade: o governo tem uma margem relativamente confortável de criação autónoma de regras, sem ter de se submeter às agruras do debate e da decisão parlamentar. Grande parte das decisões e das matérias que, em vários países europeus, são da responsabilidade de um parlamento, não saem necessariamente, entre nós, da esfera autónoma do governo, que legisla nelas em pé de igualdade com aquele órgão que deteria o poder legislativo por excelência. A democracia, com a sua experiência também já longa de maiorias absolutas e de coligações........

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