Aproximando-se o aniversário das cinco décadas do 25 de abril de 1974, o fim da idade da juventude e o início da maturidade, na escala de alguns autores medievais, pode ser bom não apenas proteger o que se conquistou, mas igualmente recordar o que foi ultrapassado e nunca vivido por boa parte dos Portugueses.

O estatuto da mulher está nesse plano: o que é óbvio para quase todos hoje não significa que, há bem pouco tempo, fosse quase o oposto. As mulheres não podiam aceder à magistratura, à diplomacia, ser polícias ou trabalhar na administração local. Apenas em 2004 pela primeira vez há uma mulher como juíza conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, Maria Laura Leonardo. Careciam de autorização do marido para trabalhar ou para sair do país. O divórcio estava vedado no casamento católico. O salário da mulher era quase metade do salário do homem em circunstâncias idênticas. O acesso a cuidados de saúde para grávidas e mães de filhos ditos ilegítimos era limitado. O direito de voto era restrito, como se sabe, e ainda mais limitado para as mulheres. Em 1975 são eleitas mulheres para a Assembleia Constituinte e estão recenseados mais de 6 milhões de cidadãos para votar, muitos destes mulheres, em contraponto com o pouco mais de 1 milhão de recenseados até então. Enfermeiras ou hospedeiras estavam proibidas de casar, professoras apenas podiam casar com autorização prévia, publicada em Diário da República, e com homem com um salário superior. 31% das mulheres em 1974 era analfabeta, em contraste com 19% dos homens. O alcoolismo descontrolado no âmbito familiar e a violência doméstica sobre as mulheres era a regra em muitos contextos.

Por tudo isto e por muito mais, não deixa de ser extraordinário que, num livro muito recente, apresentado publicamente por um antigo primeiro-ministro, se leia, sem pudor: “Outra certeza que todos partilhamos é que ao longo dos séculos a mulher foi sucessivamente oprimida e desprezada. Esta convicção é estranha por duas razões. A primeira é que as mulheres sempre foram a maioria da população, o que torna insólito que sejam dominadas pela minoria masculina. O segundo motivo é que essas senhoras, alegadamente tiranizadas, nunca se queixavam ou manifestavam o seu desagrado. Se virmos com mais cuidado, a razão dessa tese é que as nossas avós raramente participavam da vida pública; não tinham carreira, não influenciavam a política, a cultura, a sociedade. O que faziam era dedicar a sua atenção toda à administração da casa, à educação dos filhos, à orientação e ao conforto da família. Precisamente aquilo que os nossos antepassados achavam o mais importante, e que nós hoje consideramos secundário, por estarmos todos virados para o exterior” (João César das Neves).

Para além da ironia triste deste comentário provir de um professor de Economia da escola de Economia e Gestão mais liberal aqui do retângulo, formadora por excelência dos gestores de topo do nosso pequeno capitalismo, ou seja, dir-se-ia, nas suas palavras, aqueles mais “virados para o exterior”, há algo aqui de mais estrutural. E isso é o sentimento de que a mulher, na tradição ocidental, serve bem para mãe e para puta (como a legislação do Estado Novo bem regulava), para gerar homens, primeiro, e para os apaziguar, depois, mas para pouco mais do que isso. Passagens há no Antigo Testamento bem elucidativas, aliás, deste contexto. O estranho é que, dois milénios passados, ainda haja palavras – e homens – assim.

QOSHE - A pequena ideia de mulher no pequeno livro da família de 2024 - Miguel Romão
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A pequena ideia de mulher no pequeno livro da família de 2024

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12.04.2024

Aproximando-se o aniversário das cinco décadas do 25 de abril de 1974, o fim da idade da juventude e o início da maturidade, na escala de alguns autores medievais, pode ser bom não apenas proteger o que se conquistou, mas igualmente recordar o que foi ultrapassado e nunca vivido por boa parte dos Portugueses.

O estatuto da mulher está nesse plano: o que é óbvio para quase todos hoje não significa que, há bem pouco tempo, fosse quase o oposto. As mulheres não podiam aceder à magistratura, à diplomacia, ser polícias ou trabalhar na administração local. Apenas em 2004 pela primeira vez há uma mulher como juíza conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, Maria Laura Leonardo. Careciam de autorização do marido para trabalhar ou para sair do país. O divórcio estava vedado no casamento católico. O salário da mulher era quase metade do salário do homem em........

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