As alterações climáticas ocupam a preocupação geral da nossa sociedade e, em particular, das estratégias políticas dos últimos anos. Isso justifica tudo o que surja em favor de políticas que permitam valorizar as energias renováveis sem olhar a meios para as alcançar. Foi com esses objetivos em mente que assistimos ao aparecimento de barragens, às antenas eólicas em locais altos estratégicos e agora com propostas de alargamento a offshore e, ultimamente, à ocupação da paisagem com painéis solares, dando origem a verdadeiras paisagens de ferro descaracterizadas. Apesar do desagrado que todas estas alterações possam provocar, a mensagem vai sempre no sentido de haver "males menores" em prol do cumprimento de medidas europeias com vista à minimização das alterações climáticas.

A mudança da vegetação ou o desaparecimento desta ou daquela espécie animal acaba por causar indiferença, já que rapidamente acabam por surgir outras. Mesmo que não exerçam as mesmas funções no ecossistema ou sejam exóticas, pouco importa já que, à vista, a paisagem fica "ocupada". Em 1992, o biólogo inglês John Richard Krebs chamou a atenção para o que intitulou a "segunda primavera silenciosa" pela perda de diversidade biológica da paisagem inglesa, em resultado da intensificação e extensão da agricultura com monoculturas. Espécies emblemáticas de aves tinham desaparecido e o seu chilreio deixou de povoar as zonas rurais, criando um vazio difícil de especificar. O termo usado foi escolhido para aumentar a consciência ambiental da sociedade inglesa, à semelhança do título, "Primavera Silenciosa", que a americana Rachel Carson usou para chamar a atenção do efeito nefasto do inseticida DDT e de outros pesticidas no ambiente, em geral e na saúde humana, em particular.

É esta falta de consciência ambiental que reina na sociedade, independentemente das boas vontades em seguir as regras da reciclagem ou da poupança da água, da energia ou do uso de plástico. A ideia é estarem a contribuir para o "ambiente" dessa forma. O significado de biodiversidade é de tal forma abstrato, que a falta de conhecimento ou sensibilidade se deve a reconhecer a complexidade do termo ou talvez, simplesmente, não haver tempo para fazer uma pausa e refletir. Cada vez mais a conservação da biodiversidade é um problema cadente e pendente que deve ser entendido e tratado de forma global.

A população humana, atualmente com mais de 7,8 mil milhões de pessoas, representa apenas 0,01% de todas as espécies presentes no planeta. A perda de biodiversidade é um dos maiores riscos do século XXI, já que impõe custos sérios à economia e dificulta muito a abordagem de desafios globais, como as alterações climáticas. Durante os dois últimos séculos o Homem transformou a maioria dos ecossistemas do mundo, destruindo, degradando e fragmentando habitats terrestres, marinhos e outros ambientes aquáticos e minando os serviços que eles prestam.

Infelizmente, ainda não é verdadeiramente reconhecida - ou entendida - a interligação entre perda de diversidade e alterações climáticas e, por isso, não é de estranhar o desenvolvimento de medidas como o "Simplex Ambiental" ou projetos de "imprescindível utilidade pública", explorando e ocupando recursos naturais em nome da necessidade de combater as alterações climáticas ou o aumento do desenvolvimento económico do país.

Urge uma mudança fundamental no pensamento e práticas políticas. O crescimento não pode, nem deve, ser feito à custa da delapidação dos recursos naturais, o que implica saber respeitar o Acordo Global de Biodiversidade Kunming-Montreal de 2022. Para que este acordo seja possível muitos países e agências internacionais estão a seguir os chamados "mercados de biodiversidade" especialmente virados para a procura de financiamento junto do setor privado.

Também a Lei do Restauro da Natureza foi ontem finalmente aceite no Conselho e Parlamento Europeu. A proposta visa implementar medidas para restaurar, pelo menos, 20% das áreas terrestres e marítimas da UE até 2030, e todos os ecossistemas que necessitam de restauro ecológico até 2050. Os projetos de recuperação devem ser vistos como "peças de um puzzle" com estádios múltiplos e sucessivos que requerem uma contínua orientação e monitorização. Dada a incerteza sobre a evolução da dinâmica dos ecossistemas em resposta às alterações climáticas, o restauro deve aplicar soluções baseadas na natureza, para assegurar os serviços do ecossistema. Mas também neste caso é necessário empenho e investimento.

As associações não-governamentais de ambiente têm sabido, com a sua voz e o saber dos seus membros, contribuir para uma cidadania em prol do respeito pela natureza e salvaguarda da biodiversidade com base no conhecimento científico. No entanto, e apesar do aumento de projetos de ciência cidadã, a sociedade necessita ser mais ativa e menos permissiva a situações de impacto no território e exigir mais transparência nos projetos públicos e económicos.

Bióloga, professora catedrática de Ciências da ULisboa
Presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia

QOSHE - A perda de biodiversidade e as alterações climáticas - Maria Amélia Martins-Loução
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A perda de biodiversidade e as alterações climáticas

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13.11.2023

As alterações climáticas ocupam a preocupação geral da nossa sociedade e, em particular, das estratégias políticas dos últimos anos. Isso justifica tudo o que surja em favor de políticas que permitam valorizar as energias renováveis sem olhar a meios para as alcançar. Foi com esses objetivos em mente que assistimos ao aparecimento de barragens, às antenas eólicas em locais altos estratégicos e agora com propostas de alargamento a offshore e, ultimamente, à ocupação da paisagem com painéis solares, dando origem a verdadeiras paisagens de ferro descaracterizadas. Apesar do desagrado que todas estas alterações possam provocar, a mensagem vai sempre no sentido de haver "males menores" em prol do cumprimento de medidas europeias com vista à minimização das alterações climáticas.

A mudança da vegetação ou o desaparecimento desta ou daquela espécie animal acaba por causar indiferença, já que rapidamente acabam por surgir outras. Mesmo que não exerçam as mesmas funções no ecossistema ou sejam exóticas, pouco importa já que, à vista, a paisagem fica "ocupada". Em 1992, o biólogo inglês John Richard Krebs chamou a atenção para o que intitulou a "segunda primavera silenciosa" pela perda de diversidade biológica da paisagem inglesa, em resultado da........

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