Fazia frio. A geada começara de noite, crescendo entre as rochas e os soutos repletos de caruma, até ao raiar da aurora. Fixou os ramos de pinheiro, as folhas secas dos carvalhos, os despojos invernais dos castanheiros, na manta ténue e quase transparente. O dia fez-se entre os pássaros e os coelhos, pouco mais se movia. O silêncio, com a majestade simples dos grandes, tinha a mão estendida desde as orlas do rio, no berço do vale, até ao cume das montanhas, onde se cumpre o horizonte. Eu cresci aqui, na curva do outeiro. Toquei o dorso escorregadio da truta sabida, tatuada pelo ferro dos anzóis, no fundão perto da represa, onde ela habitava os movimentos dos próprios círculos. Atravessei o pontão quando as águas revoltas e subi até ao pináculo do antigo castro, nuvens escondiam as terras baixas e o sol as fazia púrpura.

Guardo na pele mapas dos caminhos enlameados e com cheiro a estrume de cavalo, das valas cheias de ervas viçosas, depois da chuva.

Celebro as unhas escuras, repletas de húmus, quando com o cinzel recortava cubos de musgo e punha no saco que a mãe me tinha dado, para o presépio. Lembro as mãos e as orelhas geladas, mas sem nelas, nem nas mãos nem nas orelhas, residir o sentido da dor. Só frio.

Quando criança, doía-me a paixão fogosa pela menina mais bonita da terceira classe. Sentávamo-nos na mesma mesa quadrada da sala de aula, em pontas diferentes, e eu ficava a olhar para o imprevisto espelho feito pela folha de fórmica polida que revestia a madeira do tampo, para os seus caracóis bem torneados e louros no reflexo, na admiração dos seus gestos decididos e da concentração sobre as pequenas coisas. Parece que os meninos da terceira classe não são dados a paixões fogosas, ou, pelo menos, é o que me contaram. Mas eu comecei cedo o exercício da paixão e do fogo. Desde que me lembro, tudo em mim me desperta uma curiosa vivacidade e o querer. É possível que se sofra mais assim, mas talvez se viva mais, o que quer que isso queira dizer.

Não pretendo com esta afirmação diminuir os desapaixonados, quem não se cativou pela neve silente ou no estendido calor do deserto. Os que não sentiram o aguilhão cortante do ciúme, não aquele que pesa sobre quem se ama, antes o que toca todos os momentos, o ciúme que revela o feroz gosto por tudo o que se quer e se sabe ser impossível obter, pois o tempo e o espaço vão sempre além do chão que se pisa.

Sentir intensamente não diminui os outros nem engrandece os pacientes do achaque. É só um atributo, entre tantos outros, que povoam os seres dos céus e da terra.

Regresso à recolha do musgo, curvado, num recanto entre dois troncos maciços e uma rocha de granito, coberta de líquen.

Estava só, e na procura dos pedaços mais verdes e densos.

Não reparei na chegada da raposa.

"Olá", disse a raposa. Era uma raposa com ar matreiro, ou pelo menos parecia-me uma raposa com ar matreiro, talvez por me terem dito que as raposas têm ar matreiro.

"Olá", disse eu. E continuei a colher musgo.

"Não pareces muito surpreendido por me ver". Disse a raposa.

"És só uma raposa que fala ao fim da tarde, porque havia de estar surpreendido?". Perguntei.

"E se eu te dissesse que sou uma princesa que foi transformada, por um sortilégio antigo, em raposa, e que aqui erro entre as árvores, de geração em geração?". Inquiriu a raposa.

"Bem, nesse caso" - disse eu, continuando a minha tarefa e dela não tirando os olhos, de costas para o animal - "Nesse caso, diria que és uma princesa que foi transformada por um sortilégio antigo em raposa, e que aqui erras entre as árvores, de geração em geração."

A raposa não gostou da resposta. E fez-se silêncio. Quando me levantei e olhei em torno, ela tinha partido.

Talvez não falasse, há muito tempo, com ninguém. Talvez lhe devesse ter dado mais atenção. Mas já me tinha cruzado com tantas raposas que se diziam princesas que mais uma não me fazia crescer água na boca por dois dedos de conversa.

O saco estava cheio e fazia-se noite. O sol abandonara as faldas quietas. Mas eu conhecia bem o caminho de volta para casa.

É bom voltar. Colocar o musgo bem juntinho, e depois poisar o presépio, o Menino Jesus, Maria, José, os animais. Por cima, a estrela que a mãe pintou com purpurina.

Acho que é o mais bonito presépio do mundo.

QOSHE - Semanologia: Um conto de Natal - Jorge Barreto Xavier
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Semanologia: Um conto de Natal

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25.12.2023

Fazia frio. A geada começara de noite, crescendo entre as rochas e os soutos repletos de caruma, até ao raiar da aurora. Fixou os ramos de pinheiro, as folhas secas dos carvalhos, os despojos invernais dos castanheiros, na manta ténue e quase transparente. O dia fez-se entre os pássaros e os coelhos, pouco mais se movia. O silêncio, com a majestade simples dos grandes, tinha a mão estendida desde as orlas do rio, no berço do vale, até ao cume das montanhas, onde se cumpre o horizonte. Eu cresci aqui, na curva do outeiro. Toquei o dorso escorregadio da truta sabida, tatuada pelo ferro dos anzóis, no fundão perto da represa, onde ela habitava os movimentos dos próprios círculos. Atravessei o pontão quando as águas revoltas e subi até ao pináculo do antigo castro, nuvens escondiam as terras baixas e o sol as fazia púrpura.

Guardo na pele mapas dos caminhos enlameados e com cheiro a estrume de cavalo, das valas cheias de ervas viçosas, depois da chuva.

Celebro as unhas escuras, repletas de húmus, quando com o cinzel recortava cubos de musgo e punha no saco que a mãe me........

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