Quando fui membro do Governo da República, achava graça à forma como o motorista me anunciava: "Informo que a entidade está a chegar". E eu dizia-lhe, "Por amor de Deus, não diga entidade, diga o nome!" E ele continuava a dizer "entidade". Mais tarde, apercebi-me de que ele tinha razão. Não era o Jorge Barreto Xavier que estava a chegar. Era a entidade - no meu caso, o membro do Governo com a tutela da Cultura. O Jorge Barreto Xavier era, apenas, a pessoa concreta que, naquele momento, representava "a entidade". E a "entidade" era, sem dúvida, mais importante que o Jorge Barreto Xavier. Ou seja, os lugares de topo do Governo, são mais importantes que as pessoas que os ocupam. Quer dizer, primeiro-ministro, ministro, secretário de Estado, são posições cimeiras do cuidado da comunidade, são a maior dignidade que um cidadão português pode receber - assumir o topo do poder Executivo para cuidar do bem comum. Assim, quem, em dado momento, tem essa incumbência, é mais pequeno que a sua posição de serviço público - o dever de velar pelo superior interesse dos cidadãos. Usar o poder que altas funções detêm para qualquer coisa que se desvie da competente missão, nomeadamente, no interesse próprio, da clientela ou de outros que, de alguma forma, atribuam compensações para interesses particulares, não é só degradante, é vergonhoso e merece repúdio e penalização. Infelizmente, muita mentalidade pequenina há em Portugal. Falando dos tempos da Democracia, desde os Anos 70 do século passado a esta parte, foi uso de diversos governantes a utilização do poder público que detêm para benefício de interesses particulares. Para favorecer a família, amigos, membros do partido, certas empresas, nomeadamente. Os portugueses habituaram-se a isso. Mais: muitos só ambicionam chegar ao Governo para poderem tratar da sua vidinha e da dos seus próximos e, muitos, têm inveja desses que lá chegaram, por não poderem fazer o mesmo.

Pena dele [António Costa]? Não. Pena de nós, que estamos a pagar os custos do nepotismo, do clientelismo, do facilitismo, de um modo de governar inaceitável face a um sentido de serviço público.

Felizmente, com lentidão e soluços, mas com cada vez maior assertividade, os contrapesos ao poder executivo, neste caso, o poder judicial, têm procurado equilibrar a balança, procurando impor limites aos abusos de poder, tráfico de influências, corrupção, fraude e outros crimes associados ao mau governo. E falando de mau governo, o exemplo do (des)Governo atual é assustador. Depois do desfile de nomeações e demissões de maus governantes, nós, portugueses, e o mundo em geral, assistimos à miserável situação que leva à detenção do chefe de gabinete do primeiro-ministro, à investigação criminal do próprio primeiro-ministro, à detenção de facilitadores, autarcas, empresários. No sábado passado, assistimos, também, à deplorável comunicação ao país do primeiro-ministro demissionário, que usou as televisões, assim pareceu, como palco para atirar culpas para cima de outros e construir argumentos de condicionamento de futuros processos judiciais, dizendo estar a bem com a sua consciência. Como? Disse, ainda, um chorrilho de banalidades que levam a crer que António Costa está de cabeça perdida. E não é para menos. Mas se o desfecho da sua vida política é este, só a ele se deve - diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és. Pena dele? Não. Pena de nós, que estamos a pagar os custos do nepotismo, do clientelismo, do facilitismo, de um modo de governar inaceitável face a um sentido de serviço público. Pena daqueles e daquelas que aceitaram associar-se a este (des)Governo de boa fé e agora veem o seu nome ligado a este triste espetáculo da vida (su)real. E uma grande responsabilidade para o sistema judicial: que demonstrem que agiram bem e fundamentadamente - se não for o caso, então, nem o Menino Jesus salva o Natal.

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Semanologia: Ética política e consciência

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13.11.2023

Quando fui membro do Governo da República, achava graça à forma como o motorista me anunciava: "Informo que a entidade está a chegar". E eu dizia-lhe, "Por amor de Deus, não diga entidade, diga o nome!" E ele continuava a dizer "entidade". Mais tarde, apercebi-me de que ele tinha razão. Não era o Jorge Barreto Xavier que estava a chegar. Era a entidade - no meu caso, o membro do Governo com a tutela da Cultura. O Jorge Barreto Xavier era, apenas, a pessoa concreta que, naquele momento, representava "a entidade". E a "entidade" era, sem dúvida, mais importante que o Jorge Barreto Xavier. Ou seja, os lugares de topo do Governo, são mais importantes que as pessoas que os ocupam. Quer dizer, primeiro-ministro, ministro, secretário de Estado, são posições cimeiras do cuidado da comunidade, são a maior dignidade que um cidadão português pode receber - assumir o topo do poder Executivo para cuidar do bem comum. Assim, quem, em dado momento, tem essa incumbência, é mais........

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