É todos os dias que uma maioria absoluta de um só partido cai a meio de uma legislatura? Não - nunca tinha acontecido antes. É normal que um primeiro-ministro se demita porque está a braços com a Justiça? Não - também nunca tinha acontecido antes.

Vivemos uma crise política gerada exclusivamente dentro da maioria PS. Sim, é certo: foi publicado um certo comunicado da PGR onde foi incluído um famoso último paragrafo, que é este: "No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto supra referido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente."

Mas António Costa podia não se ter demitido. Até tem doutrina produzida sobre como não basta ser-se arguido (que ele nem é, que se saiba) para um político ter de se demitir. Podia ter ficado - não fosse estar já bastante fragilizado. E, convém recordar: encontraram quase 80 mil euros em notas no gabinete do seu chefe de gabinete. Teria mesmo de sair, com último parágrafo ou sem ele.

Teria de o fazer e isso seria apenas o clímax da incrível sucessão de tiros nos pés que a maioria absoluta PS se entreteve a disparar sobre si própria desde o princípio. Até à demissão do primeiro-ministro vimos mais de uma dúzia de remodelações. Houve uma secretária de Estado que bateu o recorde nacional da nomeação/demissão mais rápida de sempre (23 horas). Os "casos e casinhos" sucederam-se a uma velocidade alucinante. A maioria PS suicidou-se; e a oposição não teve de mexer uma palha para que isso acontecesse.

E não foram só os "casos e casinhos" (soundbite em que a eficácia na memorização é diretamente proporcional ao conteúdo mistificador). Foi o descalabro no SNS; a explosão nos preços da habitação; um sistema público no Ensino Básico com milhares de alunos sem professores às disciplinas todas.

Então, o que me espanta nisto? Como é possível que as sondagens ainda digam que o PS até pode ganhar as próximas legislativas? Que maravilhosa capacidade tem o PS de, com uma simples mudança de líder, pôr os contadores a zero, transformar a memória numa página em branco e, com isso, conseguir com que o país acredite que merece mais uma oportunidade? E como é isto possível quando sabemos que o próximo líder do partido será garantidamente alguém que integrou, dos pés à cabeça, a solução agora espetacularmente falhada?

Há respostas, sim.

Por exemplo, a prodigiosa incapacidade - trágica para o país - de o PSD gerar uma liderança forte e mobilizadora, o que não acontece desde Cavaco.

E podemos pensar, por outro lado, que em Portugal não é forte a tradição de penalizar políticos que se empenham, assim que chegam ao poder, em estilhaçar com grande método as promessas feitas antes, no momento da caça ao voto. Na campanha para as legislativas de 2011, Pedro Passos Coelho multiplicou-se em garantias de que não aumentaria impostos, nem cortaria salários ou pensões. Depois governou e foi o que se viu. Em 2015, embora perdendo a maioria, voltou a ganhar as eleições.

Somos portanto, em grandes fatias do eleitorado, queridos e fofinhos ao votar e, simpaticamente, só olhamos para a frente. A parte da avaliação do passado é desvalorizada.

Ora este não querer saber do passado, mesmo que apenas o passado muito recente, só pode, evidentemente, gerar um futuro nada prometedor. A amnésia e a falta de exigência do centrão eleitoral nacional alimentam a ideia de política como reino da impunidade, o que faz crescer os extremos. São os partidos do centro que fazem isso - e também os seus eleitores.

Jornalista do Diário de Notícias

QOSHE - Eleitores fofinhos que só olham para a frente - João Pedro Henriques
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Eleitores fofinhos que só olham para a frente

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13.12.2023

É todos os dias que uma maioria absoluta de um só partido cai a meio de uma legislatura? Não - nunca tinha acontecido antes. É normal que um primeiro-ministro se demita porque está a braços com a Justiça? Não - também nunca tinha acontecido antes.

Vivemos uma crise política gerada exclusivamente dentro da maioria PS. Sim, é certo: foi publicado um certo comunicado da PGR onde foi incluído um famoso último paragrafo, que é este: "No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto supra referido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente."

Mas António Costa podia não se ter demitido. Até tem doutrina produzida sobre como não basta ser-se arguido (que ele nem é, que se saiba) para........

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