Há pouco mais de um mês, estreou-se entre nós um filme que me intriga e confunde. Em boa verdade, não tenho a certeza se sou capaz de o abordar, ou simplesmente descrever, sem trair o misto de ousadia e criatividade que lhe dá vida. Digamos que Orlando, a Minha Biografia Política, de Paul B. Preciado, parte de um pressuposto que merece ser discutido. Não no sentido de o "desmentir", entenda-se -- podemos relacionar-nos com um filme, mesmo que não nos reconheçamos na sua verdade. Antes observando os efeitos do seu programa narrativo.

Quem é o Orlando do título? Transcrevo a sinopse do filme, disponível no site da respectiva distribuidora (Nitrato Filmes): "Em 1928, Virginia Woolf escreveu Orlando, o primeiro romance em que o personagem principal muda de sexo no meio da história. Um século depois, o escritor e ativista trans Paul B. Preciado decide enviar uma carta filmada a Virginia Woolf: o seu Orlando saiu da sua ficção e vive uma vida que nem ela poderia imaginar. Preciado organiza um casting e reúne 26 pessoas trans e não binárias contemporâneas, de 8 a 70 anos, que personificam Orlando."

O menos que se pode dizer é que estamos perante uma insólita derivação documental (o filme recebeu o prémio de melhor documentário no Festival de Berlim), mobilizadora pelo inesperado do seu dispositivo. Todas as pessoas que prestam o seu testemunho apresentam-se pelo nome, acrescentando: "... e neste filme serei o Orlando de Virginia Woolf".

Algo em mim resiste ao filme, algo provavelmente preconceituoso, dirão alguns. Estão no seu direito, embora não sinta a minha resistência ligada a discursos como os que, há 30 anos (1993, precisamente), lançaram suspeitas sobre Filadélfia, de Jonathan Demme: primeiro, porque era um filme de Hollywood; depois porque a personagem central, um homossexual, era interpretada por um actor heterossexual (Tom Hanks). Como sempre, a difamação militante de Hollywood promovia a ignorância da história do cinema e das especificidades dos filmes, enquanto a "coincidência" compulsiva das identidades sexuais de quem representa e quem é representado me parecia (e parece) decorrer de uma lógica ditatorial que tende a destruir as singularidades de qualquer prática artística.

Seja como for, tudo o que possamos dizer ou pensar sobre Filadélfia não se "duplica" face a outro filme. Em Orlando, a Minha Biografia Política, encontramos os sinais da diversidade de pensamentos e reflexões de muitos estudos de género. Cito, por isso, um livro (também de 1993) que, nesse domínio, adquiriu já estatuto de clássico, Corpos que Contam, de Judith Butler -- a respectiva tradução, de Nuno Quintas, está disponível no mercado português desde o passado mês de maio (ed. Orfeu Negro). No derradeiro capítulo, intitulado "Criticamente queer", a autora resume a complexidade, inseparavelmente sexual e política, do que está em jogo, escrevendo: "Não criamos do nada os termos políticos que hão-de representar a nossa "liberdade", nem somos responsáveis pelos termos que carregam a dor da injúria social. Mas isso não torna menos necessário pensá-los e repensá-los no discurso político."

Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que Orlando, a Minha Biografia Política tenta "materializar" em termos cinematográficos um princípio de acção que Butler comenta e desenvolve em muitas páginas, lembrando: "Prescrever uma identidade exclusiva a um sujeito multiplamente constituído, como o é qualquer sujeito, significa impor uma redução e uma paralisia (...)". Acrescento eu: não podemos ser "reduzidos" a uma identidade que os outros controlam; não podemos ficar "paralisados" numa identidade que funcione como mero "cartão" social ou sexual.

Tudo isto faz sentido, mesmo que possamos não nos reconhecer no modo como esse sentido se faz. Resta perguntar se faz sentido algo bem diferente: será que a escrita de Virginia Woolf pode ser encarada como uma espécie de panfleto premonitório dos combates contemporâneos pela igualdade e respeito de todos os humanos, seja qual for a sua orientação sexual? E será preciso sublinhar que o que está em causa não é, nem de longe nem de perto, o valor histórico, político e ético de tais combates?

Regressemos a Virginia Woolf. Mesmo não esquecendo que há nela a subtileza e a inteligência que marcaram vários feminismos que se seguiram, talvez seja sensato ter em conta que o sexto e último capítulo do romance desemboca no reconhecimento (que é uma forma de celebração) dos muitos "eus" que há em cada "eu", assim criando um espaço de transfigurações que está para lá do xadrez das sexualidades: "(...) pois cada pessoa pode multiplicar com a sua própria experiência as diferentes condições que impõem os seus diferentes eus".

De que falamos quando falamos de Virginia Woolf? Será ela uma "mensageira" da nossa sexualidade?

Aliás, muito antes, no terceiro capítulo, poucos parágrafos depois de Orlando mudar de sexo ("E não podemos deixar de confessar: era mulher"), há na prosa de Virginia Woolf um curioso e irónico distanciamento: "Tratem outras penas de sexo e sexualidade; nós abandonamos tão odioso assunto o mais depressa possível" -- as citações provêm da tradução de Orlando por Cecília Meireles (ed. Livros do Brasil/Coleção Miniatura, 2019).

Dito de outro modo: a odisseia de Orlando não se enraiza em qualquer militância em torno da identidade sexual (seja ela qual for). A sua dinâmica é visceralmente literária, expondo e, num certo sentido, ironizando qualquer diferença sexual através de uma risonha indiferenciação (que, escusado será dizer, não é o mesmo que indiferença): "Embora pareça estranho, a verdade é que, até então, pouco se tinha preocupado com o seu sexo." A ponto de o efeito exterior, ou melhor, para o exterior, ser uma serena redundância: "Ninguém manifestou a menor suspeita de que Orlando não fosse o Orlando que sempre tinham conhecido."

Está, então, um objecto contemporâneo (por exemplo, um filme) proibido de "reconverter" um livro com quase um século, encaixando-o nas leis da sua própria narrativa? Claro que não. Resta saber se a ocupação simbólica de uma obra por outra não corre o risco de reduzir a memória da mais antiga a uma vocação panfletária que lhe é totalmente estranha? Se pudermos e soubermos viver com a irredutibilidade das histórias que nos foram legadas, não precisamos de ter medo de Virginia Woolf.

Jornalista

QOSHE - Virginia Woolf já não mora aqui - João Lopes
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Virginia Woolf já não mora aqui

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19.11.2023

Há pouco mais de um mês, estreou-se entre nós um filme que me intriga e confunde. Em boa verdade, não tenho a certeza se sou capaz de o abordar, ou simplesmente descrever, sem trair o misto de ousadia e criatividade que lhe dá vida. Digamos que Orlando, a Minha Biografia Política, de Paul B. Preciado, parte de um pressuposto que merece ser discutido. Não no sentido de o "desmentir", entenda-se -- podemos relacionar-nos com um filme, mesmo que não nos reconheçamos na sua verdade. Antes observando os efeitos do seu programa narrativo.

Quem é o Orlando do título? Transcrevo a sinopse do filme, disponível no site da respectiva distribuidora (Nitrato Filmes): "Em 1928, Virginia Woolf escreveu Orlando, o primeiro romance em que o personagem principal muda de sexo no meio da história. Um século depois, o escritor e ativista trans Paul B. Preciado decide enviar uma carta filmada a Virginia Woolf: o seu Orlando saiu da sua ficção e vive uma vida que nem ela poderia imaginar. Preciado organiza um casting e reúne 26 pessoas trans e não binárias contemporâneas, de 8 a 70 anos, que personificam Orlando."

O menos que se pode dizer é que estamos perante uma insólita derivação documental (o filme recebeu o prémio de melhor documentário no Festival de Berlim), mobilizadora pelo inesperado do seu dispositivo. Todas as pessoas que prestam o seu testemunho apresentam-se pelo nome, acrescentando: "... e neste filme serei o Orlando de Virginia Woolf".

Algo em mim resiste ao filme, algo provavelmente preconceituoso, dirão alguns. Estão no seu direito, embora não sinta a minha resistência........

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