Werner Teske foi o último cidadão a ser executado na República Democrática da Alemanha (RDA), na sequência da sua condenação à pena de morte. Teske era funcionário do Ministério da Segurança de Estado (Stasi). A evolução do seu trabalho levou-o a pôr em causa, não apenas os métodos da Stasi, mas também a própria orientação política do país. Em meados da década de 70, começou a preparar a sua fuga para a República Federal Alemã (RFA), reunindo material secreto que poderia funcionar como “moeda de troca” para o seu acolhimento.

Descoberto em setembro de 1980, as informações contidas nesse material nunca chegariam ao Ocidente. Num julgamento que durou apenas um dia (11 junho 1981), seria condenado por traição, espionagem e deserção — foi executado com um tiro na nuca, na prisão de Leipzig, no dia 26 de junho de 1981, contava 39 anos. A pena de morte viria a ser abolida na RDA em 1987. As condições do seu julgamento e execução não foram reveladas pelas autoridades, de tal modo que a viúva de Teske só teve conhecimento dos factos em 1990, depois da Queda do Muro de Berlim e da unificação das duas Alemanhas.

A história de Teske serve de base a um notável filme alemão intitulado, precisamente, A Última Execução (disponível nos canais TVCine), escrito e realizado por Franziska Stünkel. Não se trata de uma evocação biográfica, mas sim de uma derivação ou, como se diz na gíria, um filme “inspirado em factos reais”. A personagem central, de nome Franz Walter, é um cientista que ambiciona um lugar de professor numa instituição universitária — esse lugar é-lhe prometido, na condição de ajudar a Stasi a resolver o caso de um jogador de futebol que desertou para a RFA, devolvendo-o à RDA e, de algum modo, obrigando-o a declarar que as promessas de liberdade da sociedade ocidental não passavam de uma ilusão…

Datado de 2021, nunca lançado nas salas portuguesas, A Última Execução segue uma lógica de exposição de factos, gestos e silêncios que, além do mais, evita qualquer descrição maniqueísta do sistema de repressão de um estado totalitário. O que mais conta não é o facto de a ideologia do totalitarismo ser assumida por uns e rejeitada por outros, mas sim o modo como as suas componentes são perversamente transversais ao sistema social, definindo uma teia de valores que pontua todas as relações humanas. No papel de Walter, Lars Eidinger é brilhante na exposição de uma vulnerabilidade que começa na ingenuidade moral, desembocando no confronto desigual com um sistema político e policial em que a diferença individual tende a ser tratada como elemento sempre descartável.

Sem ter sido exibido nas salas, é pena que A Última Execução seja um objecto tão secundarizado pelo mercado. Neste tempo de proliferação de ficções que se esgotam na agitação gratuita de rótulos emanados da ideologia do politicamente correcto, eis um filme capaz de lidar com referências histórias muito concretas, recusando reduzi-las a índices deterministas de uma visão banalmente “competitiva” da política. Nesta perspectiva, estamos perante um parente próximo de dois magníficos filmes alemães realizados por Florian Henckel von Donnersmarck: As Vidas dos Outros (2006), premiado com o Óscar de melhor filme estrangeiro, também sobre a Stasi e as suas estratégias de vigilância dos cidadãos, e Nunca Deixes de Olhar (2018), sobre um pintor, inspirado em Gerhard Richter, que foge da RDA para a RFA, sempre assombrado pelas memórias de uma infância vivida em pleno nazismo (Lars Eidinger integra também o elenco).

O cinema não é uma terapia colectiva sobre a história. Um filme não é uma lição moralista para suprir as limitações informativas ou intelectuais dos espectadores. Seja como for, numa sociedade que, pelo menos na sua montra mediática, lida com a política como se fosse um concurso protagonizado por concorrentes irremediavelmente pitorescos, é normal (tristemente normal) que seja desvalorizado o valor intrínseco do cinema como janela aberta para a complexidade do mundo. Uma coisa é certa: A Última Execução merecia outra visibilidade.

QOSHE - O totalitarismo e as suas formas - João Lopes
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O totalitarismo e as suas formas

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26.02.2024

Werner Teske foi o último cidadão a ser executado na República Democrática da Alemanha (RDA), na sequência da sua condenação à pena de morte. Teske era funcionário do Ministério da Segurança de Estado (Stasi). A evolução do seu trabalho levou-o a pôr em causa, não apenas os métodos da Stasi, mas também a própria orientação política do país. Em meados da década de 70, começou a preparar a sua fuga para a República Federal Alemã (RFA), reunindo material secreto que poderia funcionar como “moeda de troca” para o seu acolhimento.

Descoberto em setembro de 1980, as informações contidas nesse material nunca chegariam ao Ocidente. Num julgamento que durou apenas um dia (11 junho 1981), seria condenado por traição, espionagem e deserção — foi executado com um tiro na nuca, na prisão de Leipzig, no dia 26 de junho de 1981, contava 39 anos. A pena de morte viria a ser abolida na RDA em 1987. As condições do seu julgamento e execução não foram reveladas pelas autoridades, de tal modo que a viúva de Teske só teve........

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