Não há muitos anos, o imaginário dos super-heróis - entenda-se: o seu marketing - conseguiu criar um público que parecia viver apenas da expectativa de uma nova estreia que, em forma de sequela, repetisse a experiência do filme anterior. Foi um tempo esclarecedor sobre as formas que pode assumir o ódio à crítica de cinema. Aliás, ódio a qualquer possibilidade de pensar os filmes e, sobretudo, com os filmes, já que a relação com o cinema pode envolver o prazer de muitas ideias e não nasce da corrida aos bilhetes para as ante-estreias do próximo blockbuster (alguns magníficos, é verdade, não é isso que está em causa).

Lembrei-me dos desmandos dessa conjuntura ao ver o belíssimo A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960 realizada por Eitarô Morikawa - é um dos títulos incluídos na terceira fase da série "Mestres Japoneses Desconhecidos", da responsabilidade da distribuidora e editora The Stone and the Plot, a quem se deve, por exemplo, a edição portuguesa do clássico estudo de Donald Richie sobre o mestre japonês Yasujiro Ozu (Ozu, 2020).

Na verdade, algo mudou. Digamo-lo da forma mais simples: mesmo sabendo que continuam a existir muitos desequilíbrios no mercado cinematográfico português, algo mudou para melhor. A saber: empresas como The Stone and the Plot, a que associamos o epíteto de "independentes" no panorama da distribuição/exibição, têm sabido alargar e diversificar a oferta cinematográfica, permitindo descobrir ou reencontrar filmes importantes das mais diversas origens - da Ásia, por exemplo.

É simples, mas não simplifiquemos. Importa não ceder às muitas formas de estupidez alimentadas pela ideologia do politicamente (ou moralmente, ou sexualmente) correto e evitar confundir o espaço dos "independentes" com o paraíso cinéfilo - desde os tempos heroicos das salas de "arte e ensaio" que o rótulo tem servido também para consagrar gloriosas mediocridades. Além de que, observando uma zona diferente do mercado, a meu ver complementar, não será o negativismo "chique" em relação à lógica de produção da Netflix que me levará a hesitar dizer que o novo filme de David Fincher, O Assassino, é uma sublime obra-prima.

A descoberta de A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960, baralha e enriquece a nossa perceção atual do cinema.

A Tragédia do Bushidô permite perceber que a relação com o passado do cinema se refaz sempre como presente - esse tempo (presente, justamente) em que acedemos a um determinado filme com uma data mais ou menos remota. Ver A Tragédia do Bushidô, feito há mais de 60 anos, nada tem que ver com a noção (falsamente) jornalística que tenta convencer-nos que de um filme "antigo" nada mais ficou a não ser o "pitoresco" dos sinais da época em que foi feito. O seu poder emocional é tanto maior quanto a encenação de uma tragédia no mundo dos samurais ecoa através de uma interrogação intemporal: como é que o primado da lei passa (ou não passa) de uma geração para outra?

Esta é a história de um jovem que, de modo a preservar a honra do seu clã de samurais, é compelido a suicidar-se num ritual (seppuku) imposto pela morte do seu soberano - recorde-se que "Bushidô" é o código moral dos samurais. Ao tentar salvá-lo pela entrega sexual, a sua cunhada, que é também a mulher que o criou, projeta essa história num terreno em que a ordem conjugal e a lógica militarista se cruzam numa avalanche de ambiguidades que convive com o tabu primordial: a hipótese do incesto.

A Tragédia do Bushidô: maravilhas do ecrã largo.

Estamos perante um filme da "nova vaga" japonesa, paralela ao que estava a acontecer em muitos outros países (França, Brasil, Portugal...), potenciando uma temática que, ao longo da década anterior, pontuara precisamente o trabalho de Ozu: a decomposição, no Japão do pós-guerra, das tradicionais relações familiares - os dramas suspensos, infinitamente pudicos, de Ozu vão-se transfigurando em tragédias carnais, por vezes marcadas por formas viscerais de violência. Aliás, é também em 1960 que Nagisa Oshima realiza esse título emblemático que é Contos Cruéis da Juventude.

Claro que há três séculos a separar o mundo feudal de A Tragédia do Bushidô da época em que o filme foi realizado. Acontece que a contaminação dos tempos - ou das medidas do tempo - é inerente à vida dos filmes, ao modo como essa vida se refaz, igual e diferente, através dos olhares de novos espectadores. Enfim, se precisarmos de responder à pergunta pueril sobre a "utilidade" do filme, podemos, em última instância, apontar a sábia utilização do ecrã largo (herdeiro do CinemaScope vulgarizado na década anterior): respeitar o sistema de composição de cada imagem, eis um valor que, neste século XXI, muitos filmes da Marvel têm tentado destruir.

Jornalista

QOSHE - Novos contos cruéis da juventude - João Lopes
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Novos contos cruéis da juventude

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05.11.2023

Não há muitos anos, o imaginário dos super-heróis - entenda-se: o seu marketing - conseguiu criar um público que parecia viver apenas da expectativa de uma nova estreia que, em forma de sequela, repetisse a experiência do filme anterior. Foi um tempo esclarecedor sobre as formas que pode assumir o ódio à crítica de cinema. Aliás, ódio a qualquer possibilidade de pensar os filmes e, sobretudo, com os filmes, já que a relação com o cinema pode envolver o prazer de muitas ideias e não nasce da corrida aos bilhetes para as ante-estreias do próximo blockbuster (alguns magníficos, é verdade, não é isso que está em causa).

Lembrei-me dos desmandos dessa conjuntura ao ver o belíssimo A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960 realizada por Eitarô Morikawa - é um dos títulos incluídos na terceira fase da série "Mestres Japoneses Desconhecidos", da responsabilidade da distribuidora e editora The Stone and the Plot, a quem se deve, por exemplo, a edição portuguesa do clássico estudo de Donald Richie sobre o mestre japonês Yasujiro Ozu (Ozu, 2020).

Na verdade, algo mudou. Digamo-lo da forma mais simples: mesmo sabendo que continuam a existir muitos desequilíbrios no mercado........

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