Eis um livro tão breve quanto precioso, recentemente lançado no mercado português: Tivemos de Remover Este Post é um romance da holandesa Hanna Bervoets (ed. Dom Quixote, tradução de Maria Leonor Raven), sobre a gestão de conteúdos na internet. O seu perturbante efeito dramático resulta menos da avaliação desses "conteúdos" e mais do modo como é feita a sua "gestão".

Numa observação sobre o facto de as sociedades contemporâneas viverem assombradas pelo poder dos mercados financeiros, Jean-Luc Godard perguntava um dia porque é que se fala sempre dos mercados, omitindo as pessoas que os fazem funcionar. Dizia ele: "Os mercados são pessoas". Encontramos algo de semelhante na escrita de Bervoets.

Estamos longe do discurso profilático que apela a um maior controlo de "conteúdos" e a mais eficazes mecanismos de fiscalização. Entenda-se: não se trata de minimizar, muito menos negar, tudo aquilo que um poder democrático pode fazer no sentido de combater o lixo da internet, mas o romance de Bervoets não é, nem pretende ser, um relatório político. Tivemos de Remover Este Post é antes o retrato de Kayleigh, uma "moderadora de conteúdos" que trabalhou para uma "rede social" - a expressão naturalizou-se, a ponto de quase ninguém perguntar o que é isso de estar em rede, e ainda menos que sociedade estamos a ajudar a consolidar.

O romance começa dezasseis meses depois de Kayleigh ter abandonado o emprego numa plataforma chamada Hexa, quando um advogado, de nome Stitic, se propõe defender os seus direitos em tribunal. Ela hesita e decide escrever-lhe - em termos esquemáticos, o livro desenvolve-se como uma espécie de carta de Kayleigh a Stitic.

A questão da aprovação de conteúdos surge como factor primordial: "A pergunta era sempre a mesma: Isto pode ficar na plataforma? E de contrário: Porque não?" Satisfazendo a curiosidade de Stitic, mas também da sua tia, do seu melhor amigo e da sua médica, Kayleigh tenta ser mais explícita. Por exemplo: "Um texto do tipo "Todos os muçulmanos são terroristas" não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma "categoria protegida", tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase "Todos os terroristas são muçulmanos" já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, "muçulmano" não é um termo insultuoso."

O problema central de Kayleigh não é estritamente laboral: que fazer com estes conteúdos? Ela expõe o impasse a que chegou através da sua experiência profissional: que fazer com a minha vida? Daí que Bervoets vá pontuando todo o livro com muitos, e muito específicos, elementos da vida privada (e, em particular, das experiências sexuais) de Kayleigh - afinal, a internet são pessoas.

Vale a pena recordar que o cinema também não tem sido alheio a todas estas inquietações, a começar pela obra-prima de David Fincher, A Rede Social (2010), sobre o nascimento do Facebook (Prime Video). Para lá da complexidade humana e conceptual da sua narrativa, a "mensagem" do filme é muito simples: o Facebook não nasceu como ilustração de uma idealização romântica da comunicação humana, mas sim como um negócio.

No nosso mundo global, quem faz a gestão de "conteúdos" da internet? E, sobretudo, como o faz?

Mais recentemente, o documentário alemão Im Schatten der Netzwelt (2018), realizado por Hans Block e Moritz Riesewieck, abordou o mesmo universo de pessoas que está representado no romance de Bervoets. O retrato das estratégias de "limpeza" da internet pelas empresas que criaram e gerem as redes (ditas) sociais dá-nos conta, em particular, do modo como essas empresas transferem tal tarefa para "outros" contextos. O filme reflecte sobretudo a situação nas Filipinas, país onde tal tarefa está atribuída a homens e mulheres com escassa e acelerada formação que, em última instância, sentem toda a sua existência afectada pela magnitude do que lhes é pedido, por vezes sendo obrigados a ver e avaliar "25.000 imagens por dia" - o título inglês do documentário é The Cleaners (à letra: Os limpadores).

A questão está muito para lá da mera fiscalização do que quer que seja, ainda que não seja possível menosprezar os mecanismos de controlo que um poder democrático, legitimamente, pode e deve exercer - leia-se a esse propósito o livro Manipulados: a verdade sobre a guerra do Facebook pelo poder absoluto, de Sheera Frenkel e Cecilia Kang (ed. Objectiva, 2022). A questão envolve a deslocação de todas as relações humanas para um território de "comunicação" em que a tensão e o conflito são exponenciados "apenas" para garantir mais polegares ao alto. Ora, não é possível discutir circuitos de comunicação omitindo os modos de viver que tais circuitos propõem ou impõem.

O documentário de Block/Riewewieck mostra Mark Zuckerberg a defender a sua "comunidade global", concebida para instalar "o poder de qualquer pessoa partilhar o que quer que seja com quem quer que seja." Que sentido faz este idealismo pueril? Também no filme, Antonio García Martínez (ex-gestor de conteúdos do Facebook, em São Francisco) recorda que, antes do Facebook e outras redes, "cada cidadão tinha direito a uma opinião; agora cada cidadão tem direito à sua própria realidade, à sua própria verdade e ao seu próprio inventário de factos." Ora, não é possível viver em democracia sem que exista um sistema de "regras de comportamento" e uma "base de verdade" que prevaleça na própria definição do colectivo. Martínez acrescenta que o Facebook "não criou isto", mas "amplifica-o e torna-o pior".

Resta dizer que o filme The Cleaners recebeu o prestigiado e prestigioso Prémio Europa, atribuído pelo Parlamento Europeu, de melhor documentário de 2018. Face à difusão ultra-discreta de que tem sido objecto (não o encontrei nas plataformas de streaming disponíveis em Portugal, mas admito que a minha pesquisa possa ter sido imperfeita), os mais práticos dirão que o problema da distribuição dos filmes europeus na Europa é outra questão. Será mesmo?


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QOSHE - 25.000 imagens por dia - João Lopes
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25.000 imagens por dia

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03.12.2023

Eis um livro tão breve quanto precioso, recentemente lançado no mercado português: Tivemos de Remover Este Post é um romance da holandesa Hanna Bervoets (ed. Dom Quixote, tradução de Maria Leonor Raven), sobre a gestão de conteúdos na internet. O seu perturbante efeito dramático resulta menos da avaliação desses "conteúdos" e mais do modo como é feita a sua "gestão".

Numa observação sobre o facto de as sociedades contemporâneas viverem assombradas pelo poder dos mercados financeiros, Jean-Luc Godard perguntava um dia porque é que se fala sempre dos mercados, omitindo as pessoas que os fazem funcionar. Dizia ele: "Os mercados são pessoas". Encontramos algo de semelhante na escrita de Bervoets.

Estamos longe do discurso profilático que apela a um maior controlo de "conteúdos" e a mais eficazes mecanismos de fiscalização. Entenda-se: não se trata de minimizar, muito menos negar, tudo aquilo que um poder democrático pode fazer no sentido de combater o lixo da internet, mas o romance de Bervoets não é, nem pretende ser, um relatório político. Tivemos de Remover Este Post é antes o retrato de Kayleigh, uma "moderadora de conteúdos" que trabalhou para uma "rede social" - a expressão naturalizou-se, a ponto de quase ninguém perguntar o que é isso de estar em rede, e ainda menos que sociedade estamos a ajudar a consolidar.

O romance começa dezasseis meses depois de Kayleigh ter abandonado o emprego numa plataforma chamada Hexa, quando um advogado, de nome Stitic, se propõe defender os seus........

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