Um grupo de amigos do falecido Carlos Santos Pereira decidiu dar vida à sua tese de mestrado e trazê-la à estampa. O livro centra-se na ação do então brigadeiro Spínola como chefe militar na Guiné, um teatro de operações onde o autor do livro prestou serviço militar como conscrito nos idos anos de 1972 e 1973.

Dada a importância que a Guiné e o general Spínola tiveram nos acontecimentos precursores do golpe militar de 25 de Abril de 1974, reveste-se de um significado muito particular a publicação deste documento no ano em que se celebram os seus 50 anos. Permite-nos ter um “olhar mais crítico e distanciado sobre a figura militar e política de António de Spínola,” e ajuda-nos a reequacionar os termos da sua rutura com o regime de Marcello Caetano.

A obra mostra-nos a faceta menos conhecida de historiador e académico de Carlos Santos Pereira, conhecido publicamente pelas suas crónicas sobre a Europa Central e a Rússia no final da Guerra Fria, e como repórter de guerra no conflito da antiga Jugoslávia, no âmbito de uma longa carreira em que trabalhou ao serviço do Diário de Notícias, Expresso, Público, Lusa e RTP.

Sobre este último, é incontornável o livro Jugoslávia à Jugoslávia. Os Balcãs e a Nova Ordem Europeia, publicado em 1995, que se tornou uma grande referência sobre o tema. Em 2001, publicou outro livro incontornável Os Novos Muros da Europa. A expansão da NATO e as oportunidades perdidas do pós-guerra Fria, de leitura indispensável para compreender os desafios que a Europa enfrenta nos dias de hoje.

Para alguns, este trabalho pode parecer afastado das preocupações intelectuais do autor. Não é o caso. Carlos Santos Pereira foi um estudioso da História portuguesa contemporânea. Não tivesse sido o seu falecimento prematuro e estaríamos hoje a publicar um documento de maior envergadura sobre o marechal Spínola, incorporando a sua atuação política em abril e no período subsequente, nomeadamente o seu envolvimento no MDLP, quando conspirou abertamente contra a democracia.

Não terá sido fácil a um defensor do regime de então ter de lidar com o desconforto causado pelas contradições resultantes do choque das suas convicções ideológicas e a constatação no terreno de não existir solução militar para a manutenção do império. Spínola tinha percebido que não se ganham guerras de guerrilha. Como disse aos seus comandantes operacionais: “Peço apenas que não a percam, meus senhores.”

Teriam de ser ensaiadas outras soluções, outras políticas que o regime não tinha. O regime não tinha um plano B para a questão colonial, Spínola procurou criá-lo no Portugal e o Futuro através da ideia de uma comunidade lusófona.

O livro transporta-nos para a atuação do chefe militar e aquilo que o distinguiu. Do ponto de vista militar, Spínola desenvolveu uma notável batalha pela conquista das almas e dos corações das populações através da manobra psicossocial, envolvendo a Administração Pública e a ação militar (agora designada nos meios académicos por comprehensive approach), aligeirou a estrutura de comando através da criação de Comandos e Agrupamento Operacionais, e promoveu uma intensa ação de africanização da guerra com características diferentes daquilo que foi feito nos outros teatros de operações.

Mas aquilo que verdadeiramente o diferenciou de outros chefes militares não foi no domínio da estratégia militar, mas o facto de ter utilizado a sua condição de governador para definir uma política colonial diferente da do Governo, atribuindo à ação política um papel central na guerra, o que levou a uma progressiva degradação das suas relações com Marcello Caetano.

Não só pensou essa política como deu passos para a implementar. Aí se inserem, por exemplo, a tentativa de encetar negociações com o PAIGC, mediadas pelo presidente do Senegal Leopold Senghor. Contudo, os seus esforços sofreram diversos revezes. O primeiro, foi a tentativa de rendição dos guerrilheiros do PAIGC com vista à sua posterior integração na força africana, que culminou com o assassinato de três majores do seu estado-maior.

O agravamento da situação operacional - em maio/junho de 1973, o PAIGC lançou uma operação que levou à queda da guarnição de Guileje, e desencadeou um conjunto de ações militares (o Inferno dos 3 G) de resultados nada favoráveis às cores nacionais - veio aumentar em Spínola a convicção da necessidade de se encontrar uma solução política para a Guiné, recusada por Marcello Caetano. Não podia aceitar uma solução para a Guiné diferente da que pudesse vir a ser aplicada a Angola e a Moçambique.

Como conclui o autor, António de Spínola fica para a História como uma figura controversa e contraditória. Se por um lado, foi um comandante militar corajoso e determinado, capaz de correr riscos e de afrontar os poderes instituídos, por outro, demonstrou uma estrondosa incapacidade para desempenhar o papel que destinara a si próprio e para o qual preparara o caminho.

QOSHE - O General Spínola e a Guiné, contra os ventos da História - Carlos Branco
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O General Spínola e a Guiné, contra os ventos da História

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14.04.2024

Um grupo de amigos do falecido Carlos Santos Pereira decidiu dar vida à sua tese de mestrado e trazê-la à estampa. O livro centra-se na ação do então brigadeiro Spínola como chefe militar na Guiné, um teatro de operações onde o autor do livro prestou serviço militar como conscrito nos idos anos de 1972 e 1973.

Dada a importância que a Guiné e o general Spínola tiveram nos acontecimentos precursores do golpe militar de 25 de Abril de 1974, reveste-se de um significado muito particular a publicação deste documento no ano em que se celebram os seus 50 anos. Permite-nos ter um “olhar mais crítico e distanciado sobre a figura militar e política de António de Spínola,” e ajuda-nos a reequacionar os termos da sua rutura com o regime de Marcello Caetano.

A obra mostra-nos a faceta menos conhecida de historiador e académico de Carlos Santos Pereira, conhecido publicamente pelas suas crónicas sobre a Europa Central e a Rússia no final da Guerra Fria, e como repórter de guerra no conflito da antiga Jugoslávia, no âmbito de uma longa carreira em que trabalhou ao serviço do Diário de Notícias, Expresso, Público, Lusa e RTP.

Sobre este último, é incontornável o livro Jugoslávia à Jugoslávia. Os Balcãs e a Nova Ordem........

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