Tomemos, então, nós,
cidadãos comuns,
a palavra e a iniciativa.

José Saramago
Discurso na cerimónia
de entrega do Prémio Nobel, 10-12-1998

No passado dia 10 de dezembro, completaram-se 75 anos sobre a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda com a memória recente da Segunda Guerra Mundial, a Assembleia-Geral das Nações Unidas, nesse ano de 1948, juntava os seus Estados-membros em torno de princípios que, sendo coletivos, são também individuais, assentes no reconhecimento do direito à vida, à liberdade e à segurança, como fundamentos da justiça e da paz no mundo.

A primeira geração de Direitos Humanos assentava, sobretudo, no reconhecimento dos direitos civis e políticos, na linha de uma longa tradição que passou pela Revolução Francesa e também pela Carta dos Direitos que, desde o século XVIII, estabelece os limites de ação dos Governos americanos em relação às liberdades individuais. A evolução das sociedades tornou necessário incluir os direitos económicos, sociais e culturais, a que se junta, desde meados do século XX e, sobretudo nas últimas décadas, o direito a um meio ambiente de qualidade que permita viver com dignidade. Ainda mais recente é o reconhecimento de direitos relacionados com a bioética, com o desenvolvimento tecnológico, com a informação e comunicação e com o ciberespaço.

A sociedade contemporânea tornou-se mais complexa e tendemos a considerar que estamos longe dos objetivos que presidiram à Declaração dos Direitos Humanos e que representa o esteio da ação das Nações Unidas (NU) e das suas diversas agências. Mesmo reconhecendo a insuficiência do seu alcance, as NU são um espaço de debate e diálogo, cuja inexistência deixaria a Humanidade ainda mais perdida nos seus trajetos e nas suas diferenças. Apesar dos escassos poderes do secretário-geral, a sua intervenção continua a ser relevante, bem como a das agências especializadas que, apesar da sua autonomia, coordenam a ação em torno de valores e princípios comuns. Com maior ou menor empenho, de acordo com os Governos e as suas orientações, nenhum Estado abandonou as Nações Unidas, mesmo tendo deixado de apoiar agências ou abandonado estruturas, como aconteceu, em 2018, com os Estados Unidos em relação ao Conselho dos Direitos Humanos, a que regressaram com a Administração do presidente Biden.

Os últimos tempos têm sido pródigos na evidência das muitas fraturas e dificuldade de ação que, como sabemos, decorre de uma estrutura de governação das NU que precisa de ser mais representativa das alterações geopolíticas, mas terá dificuldade de renovação ao implicar partilha do poder.

Mas se este é o espaço dos Estados, o desafio que se coloca é saber qual é, e pode ser, a intervenção de cada um de nós. Esse é o apelo de José Saramago no célebre discurso proferido em Estocolmo, aquando da cerimónia de entrega do Prémio Nobel, no dia em que se cumpriam 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Diz José Saramago: "Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. (,,,) Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos."

Na sequência deste apelo à responsabilidade de cada um, em 2015, por iniciativa da Universidade Autónoma do México e da Fundação José Saramago (FJS), constituiu-se um grupo de trabalho com especialistas de diversas áreas que integrou também diferentes instituições e cidadãos, tendo aprovado conjuntamente, em 2018, a Carta dos Deveres entregue a António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas. Neste ano de 2023, a FJS, com apoio da OEI, apresenta uma exposição sobre esta Carta dos Deveres, com impressivas fotografias de Gervasio Sánchez. Esperamos que esta exposição chegue a muitas escolas e a todos os que queiram refletir sobre a palavra e a iniciativa do cidadão comum. Também está na rua, no Campo das Cebolas, bem perto da oliveira que guarda a memória de Saramago. Que melhor forma de comemorar o Natal e o renascimento da esperança.

Boas Festas e um ano mais justo, equitativo e feliz.

Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos

QOSHE - Direitos e Deveres Humanos - Ana Paula Laborinho
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Direitos e Deveres Humanos

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20.12.2023

Tomemos, então, nós,
cidadãos comuns,
a palavra e a iniciativa.

José Saramago
Discurso na cerimónia
de entrega do Prémio Nobel, 10-12-1998

No passado dia 10 de dezembro, completaram-se 75 anos sobre a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda com a memória recente da Segunda Guerra Mundial, a Assembleia-Geral das Nações Unidas, nesse ano de 1948, juntava os seus Estados-membros em torno de princípios que, sendo coletivos, são também individuais, assentes no reconhecimento do direito à vida, à liberdade e à segurança, como fundamentos da justiça e da paz no mundo.

A primeira geração de Direitos Humanos assentava, sobretudo, no reconhecimento dos direitos civis e políticos, na linha de uma longa tradição que passou pela Revolução Francesa e também pela Carta dos Direitos que, desde o século XVIII, estabelece os limites de ação dos Governos americanos em relação às liberdades individuais. A evolução das sociedades tornou necessário incluir os direitos económicos, sociais e culturais, a que se........

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