À memória de Noel Aguirre Ledezma (1960-2024),
meu companheiro da Bolívia

No início deste ano, partiu inesperadamente o meu companheiro da Bolívia, que tanto me ensinou. No pouco tempo de convívio, tivemos conversas que me marcaram pelo seu sentido crítico e pelas distintas visões que me trouxeram, a par de um enorme conhecimento. Noel foi vice-ministro da Educação e ministro do Planeamento de Governos da Bolívia, mas gostava de se apresentar como Educador Popular.

A leitura dos seus artigos e livros foi sempre uma descoberta e, sobretudo, momentos de reflexão sobre o que julgamos adquirido. Num dos nossos últimos encontros, ofereceu-me um pequeno livro que me tem acompanhado e muito discutimos Bolivia: Vivir Bien, una alternativa ante la crisis civilizatória (Bolivia, 2021). Viver Bem - Bom Viver são ideias recuperadas das tradições ancestrais e que hoje são estudadas como ética em muitas universidades.

A preocupação com o ambiente que se tornou tema recorrente das nossas sociedades (com bolsas de contestação que consideram tudo normal ou, ainda mais recorrente, não se dispõem a mudanças pelos impactos económicos que identificam), é afinal um eixo central do viver bem, pensamento dos povos originários, que propõe a unidade entre o Homem e a Natureza e, sobretudo uma relação horizontal, ao revés da perspetiva vertical da tradição ocidental, que considera a natureza como algo externo, convertível em mercadoria. Algumas reflexões teóricas defendem que estes paradigmas Viver Bem-Bom Viver, agora mais amplamente recuperados por políticas nacionais e locais, inauguram as teorias do pós-desenvolvimento, a partir de um pensamento próprio de sociedades antes consideradas subdesenvolvidas.

A capa do pequeno livro de Noel Aguirre Ledezma é ilustrada com uma pintura popular dedicada ao “Viver Bem” e atravessada por legendas que se entrelaçam e constituem o fundamental deste pensamento: “Comunidade, não posso viver bem se os outros vivem mal”, “Acesso a bens materiais e realização afetiva, subjetiva, intelectual e espiritual”, “Harmonia com a Terra Mãe, viver em equilíbrio com todos os seres vivos”, “Outro mundo é possível”.

O paradigma ocidental a que pertenço continua a acreditar que o progresso é infinito e o crescimento económico mantém-se como grande indicador de desenvolvimento. Sabemos (mas não nos apetece acreditar) que os recursos são finitos e precisamos de mudar o nosso modo de vida. Atravessamos crises (financeira, ambiental, imobiliária, alimentar, …) e julgamos que haverá sempre uma saída. São as crises e o seu mal-estar que estão na raiz do descontentamento a que assistimos nas sociedades do progresso instaladas no Norte Global. Os cidadãos querem outra coisa, muitas vezes sem saberem muito bem o que representam as alternativas. Outra coisa.

As sociedades consideradas desenvolvidas - o Norte Global - estão cada vez mais perdidas nos seus modelos. Tenhamos a capacidade de refletir sobre outros modos de vida e reconhecer no pensamento ancestral (que quase dizimámos) ensinamentos - também científicos - que acrescentam valor ao conhecimento.

Resta-nos a esperança de que nos falava Paulo Freire, mas “ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”. Aprender com os outros e, sobretudo, ter a coragem de pensar e fazer diferente. Outro mundo é possível.


Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos

QOSHE - Desnorteados - Ana Paula Laborinho
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Desnorteados

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17.01.2024

À memória de Noel Aguirre Ledezma (1960-2024),
meu companheiro da Bolívia

No início deste ano, partiu inesperadamente o meu companheiro da Bolívia, que tanto me ensinou. No pouco tempo de convívio, tivemos conversas que me marcaram pelo seu sentido crítico e pelas distintas visões que me trouxeram, a par de um enorme conhecimento. Noel foi vice-ministro da Educação e ministro do Planeamento de Governos da Bolívia, mas gostava de se apresentar como Educador Popular.

A leitura dos seus artigos e livros foi sempre uma descoberta e, sobretudo, momentos de reflexão sobre o que julgamos adquirido. Num dos nossos últimos encontros, ofereceu-me um pequeno livro que me tem acompanhado e muito discutimos Bolivia: Vivir Bien, una alternativa ante la crisis civilizatória (Bolivia, 2021). Viver Bem - Bom Viver são ideias recuperadas das tradições ancestrais e que hoje são estudadas como ética em muitas........

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