A Europa tem sido marcada, nos últimos anos, por sucessivos pedidos de entrada de emigrantes. Trata-se de uma situação que está a abalar as estruturas sociais dos estados membros e cujos efeitos políticos estão a tornar-se visíveis nas mais recentes eleições.
A forma desumana como os emigrantes têm chegado à Europa, atravessando o Mar Mediterrâneo, perturbam muito aqueles que defendem a liberdade. Não querendo aqui entrar na questão da emigração atual, irei recordar uma viagem efetuada do Porto para o Brasil, pelo navio português “Defensora”, rotulado então como o “navio maldito”.

A independência do Brasil, em 1822, associada aos conflitos internos que marcaram Portugal na primeira metade do séc. XIX, incentivou milhares de portugueses a deslocarem-se para terras brasileiras. Sendo o Minho uma região profundamente rural e marcada pela miséria e a fome, os bracarenses e os minhotos não hesitaram em embarcar nesta aventura, para as terras da América.
O movimento de portugueses para o Brasil, durante a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foi realizado na pior das misérias. Em muitos casos, essas viagens eram realizadas em condições piores do que as que enfrentavam os escravos africanos trazidos para o Brasil! Nos séculos anteriores, “a sorte dos negros de África era mais feliz: tinham de ser vendidos, e então havia interesse em apresentá-los no mercado gordos e lusidios” (“O Bracarense”, 24.7.1855). Mas os portugueses que iam para o Brasil sofriam mais porque pagavam “a sua passagem no porto de embarque, e, por conseguinte, quantos mais morressem a bordo, menos despeza faz o dono do navio!” (Id)

O episódio ocorrido com a galera portuguesa “Defensora”, em 1855, foi considerado um dos piores ocorridos até então, de tal forma que a fonte atrás referida considerava que “Nos annaes do tráfico da escravatura e da colonisação não ha talvez um acontecimento tão desgraçado como o que se deu a bordo da galera Defensora”! Trata-se de um episódio que daria um excelente filme, semelhante ao “La Amistad”.
No dia 16 de maio de 1855 chegou a Grão-Pará (Brasil) a galera portuguesa “Defensora”, capitaneada por Rafael António Pereira Caldas. Esta galera navegava por conta da “Companhia de Navegação e Comércio do Amazona”.
No dia 17 de julho de 1855, “O Bracarense” noticia esta dramática viagem, referindo que há “traficantes de escravatura branca” a levar portugueses para o Brasil, como a que saiu do Porto no dia 19 de abril de 1855 e chegou ao Pará 27 dias depois. O navio transportava 289 pessoas e 47 morreram à fome, à sede e à pancada!
No relato é mencionado que, quando o navio atracou em Grão-Pará, um empregado da companhia foi a bordo ver o que se passava, confirmando que tinham morrido 47 pessoas à fome, ao frio e por espancamento. Este cenário alarmou os habitantes locais, e “As vistas do povo que corria ao caes cravavam-se nesse navio maldito, como n’um ponto escuro do inferno”! Todos os que viram este navio receavam que algumas vítimas fossem um familiar ou um amigo!

Quando desembarcaram em Grão-Pará “No rosto de todos esses infelizes viam-se claramente os signaes de horríveis soffrimentos causados por incommodos de toda a qualidade, pela fome, sede e espancamentos”!
Os sobreviventes, interrogados pelas autoridades brasileiras, referiram que no dia em que saíram do Porto “se havia preparado uma caldeirada de caldo, mas que tendo a maior parte dos colonos caido doentes com o enjôo foram deixados n’um perfeito abandono; que só no fim de três dias é que esse mesmo caldo fora dado a alguns e que a continuação do tratamento fora caldo de sardinhas e mantimento arruinado; que esse mantimento começara a ser cosinhado em agua salgada do mar, e que esses alimentos concorreram para desenvolver-lhes desinterias”!
Como se não bastava “Principiaram os primeiros rigores do monstro capitão Rafael António Pereira Caldas. Adoecera uma mulher e seus filhos; o marido dessa desventurada foi preparar-lhe a cama e tratar da acomodação de seus filhos. 0 insolente capitão desceu ao porão armado d’ura calabrote e espancou barbaramente esse pae de familia porque fòra ao logar destinado para as mulheres! Esse desgraçado morreu no dia seguinte, cujo falecimento foi motivado pelo espancamento, acompanhado talvez pela dôr que lhe causara o estado da sua família (…) em seguida a viuva succumbiu também abandonada, e ahi ficaram no porão d’um navio uns poucos de innocentes órfãos de pae e mae, que viram lançar ao mar para todo o sempre!!!”.
Estes terríveis episódios eram diários: “agora era um velho que ainda não tinha exalado o ultimo suspiro e que o barbaro capitão gritava ao charco, e esse velho era arrojado às ondas do oceano; logo era uma criança ainda palpitante que se arrojava da borda fóra e ia cair sobre o cadaver do pae ou da mãe”!

As atrocidades cresciam com os dias de viagem: se um doente pedia água, o capitão dava-lhe pancada! A comida e água que existia no interior do navio “não se dava, vendia-se! Quem não tinha dinheiro morria à fome e à sede”!
Num ato de desespero os passageiros lavraram um protesto contra o procedimento atroz do capitão. Mas logo o redator desse protesto “foi amarrado já dentro do porto e ia ser castigado pelo carrasco Rafael António Pereira Caldas, quando os companheiros se levantaram em massa contra o seu algoz, que recuou”.
É conhecida a lista das 47 mortas, oriundas de Amarante, Braga, Fafe, Penafiel, Viana do Castelo, entre outros, mas por falta de espaço não é oportuno apresentá-la aqui.
Para “O Moderado” (10.7.1855) o cônsul português em Grão-Pará instaurou um processo ao capitão do navio, para confirmar até que ponto “pesa sobre a cabeça de um delinquente, réo de lesa-humanidade, despresador dos preceitos do christianismo…”.

A escravatura branca, como então ficou conhecida, causava perturbações na nossa sociedade. O “Fharol do Minho” (16.7.1855) alertava que as “frequentes emigrações dos mancebos portuguezes, que seduzidos pelas promessas insidio-sas d’um futuro explendido vão para as praias da America, e especialmente para o Brazil, offerecer as costas ao chichote dos senhores, metter pescoço no laço da escravidão; quando durante a viagem não perecem no meio dos horrores da fome e da sede”. Neste sentido, as autoridades políticas portuguesas, ao conhecerem a história do “navio maldito”, resolveram legislar sobre esta emigração.
O caso deste navio fantasma chegou à Câmara dos Deputados, no dia 2 de julho de 1855, cujo relato impressionou os Deputados! Mas houve outros dois navios malditos, cujo relato noutra altura será aqui apresentado. Refiro-me ao palhabote “Incognito” e ao patacho “Minerva”!

Assim, foi o deputado João Martens, eleito pelo Círculo de Guimarães e também de Barcelos, quem apresentou a 5 de julho de 1855 um projeto de lei na Câmara dos Deputados. De forma sintética, esse projeto de lei considerava sujeito a uma grave responsabilidade os donos dos navios que transportem colonos. Este projeto destaca ainda que nenhum comandante de navio pode sair de qualquer porto português sem apresentar a lista de passageiros às autoridades. Do mesmo modo os comandantes de navio deviam providenciar alimentos, cuidados médicos e de higiene para todos os passageiros, ficando ainda impedidos de maltratar qualquer passageiro. Quem transgredisse estas normas pagaria uma elevada multa de quatrocentos mil réis!
Quanto ao capitão do navio maldito, foi levado no dia 1 de julho de 1855 para a prisão do Limoeiro, em Lisboa.

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“Defensora - O navio maldito”

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26.11.2023

A Europa tem sido marcada, nos últimos anos, por sucessivos pedidos de entrada de emigrantes. Trata-se de uma situação que está a abalar as estruturas sociais dos estados membros e cujos efeitos políticos estão a tornar-se visíveis nas mais recentes eleições.
A forma desumana como os emigrantes têm chegado à Europa, atravessando o Mar Mediterrâneo, perturbam muito aqueles que defendem a liberdade. Não querendo aqui entrar na questão da emigração atual, irei recordar uma viagem efetuada do Porto para o Brasil, pelo navio português “Defensora”, rotulado então como o “navio maldito”.

A independência do Brasil, em 1822, associada aos conflitos internos que marcaram Portugal na primeira metade do séc. XIX, incentivou milhares de portugueses a deslocarem-se para terras brasileiras. Sendo o Minho uma região profundamente rural e marcada pela miséria e a fome, os bracarenses e os minhotos não hesitaram em embarcar nesta aventura, para as terras da América.
O movimento de portugueses para o Brasil, durante a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foi realizado na pior das misérias. Em muitos casos, essas viagens eram realizadas em condições piores do que as que enfrentavam os escravos africanos trazidos para o Brasil! Nos séculos anteriores, “a sorte dos negros de África era mais feliz: tinham de ser vendidos, e então havia interesse em apresentá-los no mercado gordos e lusidios” (“O Bracarense”, 24.7.1855). Mas os portugueses que iam para o Brasil sofriam mais porque pagavam “a sua passagem no porto de embarque, e, por conseguinte, quantos mais morressem a bordo, menos despeza faz o dono do navio!” (Id)

O episódio ocorrido com a galera portuguesa “Defensora”, em 1855, foi considerado um dos piores ocorridos até então, de tal forma que a fonte atrás referida considerava que “Nos annaes do tráfico da escravatura e da colonisação não ha talvez um acontecimento tão desgraçado como o que se........

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