- Sabe, menina, o problema do nosso país é o micropoder.

Ouvi esta frase algures em 2003 e não a consegui alcançar na altura. Como todas as outras frases que não consegui compreender na sua totalidade, ficou por aqui a batucar contra o escalpe, até se dar a tão esperada clarividência.
A palavra ética chega-nos do grego “ethos” que significa “carácter” ou “modo de ser”. O que é o bem? O que é o mal? Quais são os deveres e direitos dos indivíduos e da sociedade? A estas perguntas também as diferentes religiões procuraram dar resposta. E orientação sobre o comportamento humano.
Na antiguidade e na Idade Média a ética estava subordinada à religião. Era vista como um conjunto de normas e valores revelados por Deus ou pelos deuses, que deveria ser obedecido pelos fiéis sob pena de castigo ou recompensa na vida após a morte. A ética religiosa é baseada na autoridade, na fé e na tradição, e não admite questionamentos ou críticas. Na Idade Moderna desenvolveu-se a ética racional, com a autonomia da ética em relação à religião. Passou a ser vista como uma ciência ou uma filosofia, com fundamentos nos princípios e valores morais da razão humana ao invés da revelação divina. A ética pluralista chegou na Idade Contemporânea, vista como uma construção histórica e cultural, que varia de acordo com o contexto e a situação. Não possui um fundamento absoluto ou definitivo e baseia-se na tolerância, na democracia, na responsabilidade.

Para Sócrates, a ética procurava a verdade através do diálogo e da razão ao mesmo tempo que questionava as opiniões e os costumes vigentes. “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.”. Platão, seu discípulo, descreveu no livro A República a organização ideal da sociedade em três classes: os governantes, os guardiões e os produtores, numa utopia política. Aristóteles, discípulo de Platão, fez uma distinção entre a ética e a política, sendo esta última a arte de governar a cidade e de promover o bem comum. Maquiavel (a carga do nome faz-lhe justiça) rompeu com a tradição ética clássica e cristã ao afirmar que a política tinha leis próprias, independentes da moral. Considerado o fundador da ciência política moderna, afirmou que “os fins justificam os meios”. Kant, expoente da filosofia iluminista, defendeu que o único bem incondicional era o dever, expresso em regras universais e necessárias que deviam ser seguidas por todos os seres racionais. “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” e “trata a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.

A ética, portanto, pode ser analisada tanto numa perspectiva macro, que envolve o governo, as instituições e os exemplos de micropoder, como numa perspectiva micro, nas relações pessoais de amizade, de amor e de respeito consigo mesmo. Em ambos os casos, a ética implica uma reflexão crítica sobre os valores e as normas que regem a conduta humana, bem como uma responsabilidade pelos efeitos das ações sobre si mesmo e sobre os outros. A política não deve existir separada da ética, nem das consequências inerentes às acções humanas por força de um conjunto de leis que regulamenta esses comportamentos como crime, base de um sistema de justiça que se pretende ativo e independente numa democracia.
Michel Foucault, filósofo francês que viveu no século passado, estudo e pensou o poder, entre outros temas. Concluiu que o poder se fragmentou em micropoderes, normalmente exercidos por pessoas despreparadas, que por sua vez sustentam o macropoder.

Ao longo destes 20 anos compreendi melhor a frase deste senhor que foi meu senhorio e avô de três alunos meus. Continuo a ter muitos exemplos disto à minha volta e o caro leitor, certamente, também. Até quando?
Como muito bem disse Saramago, “o egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.”.
Devia ser obrigatória a disciplina de Ética (que com facilidade engole a de Cidadania) desde o 3º ano até ao final da escolaridade obrigatória, com reflexões e debates, com estudo de exemplos reais que, infelizmente, não nos faltam.

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“A ética que tanto nos falta”

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24.11.2023

- Sabe, menina, o problema do nosso país é o micropoder.

Ouvi esta frase algures em 2003 e não a consegui alcançar na altura. Como todas as outras frases que não consegui compreender na sua totalidade, ficou por aqui a batucar contra o escalpe, até se dar a tão esperada clarividência.
A palavra ética chega-nos do grego “ethos” que significa “carácter” ou “modo de ser”. O que é o bem? O que é o mal? Quais são os deveres e direitos dos indivíduos e da sociedade? A estas perguntas também as diferentes religiões procuraram dar resposta. E orientação sobre o comportamento humano.
Na antiguidade e na Idade Média a ética estava subordinada à religião. Era vista como um conjunto de normas e valores revelados por Deus ou pelos deuses, que deveria ser obedecido pelos fiéis sob pena de castigo ou recompensa na vida após a morte. A ética religiosa é baseada na autoridade, na fé e na tradição, e não admite questionamentos ou críticas. Na Idade Moderna desenvolveu-se a ética racional, com a autonomia da ética em relação à religião. Passou a ser vista como uma ciência ou uma filosofia, com fundamentos nos princípios e valores morais da razão humana........

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