O que impede o clube de avançar com a revisão dos estatutos? Fez na última semana dois anos que uma comissão de revisão estatutária foi criada

Há uns dias ouvia um amigo meu, nascido e criado em Lisboa, explicar que dá por si nervoso sempre que há muito silêncio à sua volta. Acontece-lhe geralmente quando sai da cidade e visita um local pacato com o objetivo de descansar. Acaba por repousar menos do que gostaria, talvez porque o seu cérebro já só saiba viver numa frequência sonora feita da paisagem sonora de uma cidade. Eu, que deixei de viver em Lisboa há cinco anos, tenho um pouco a sensação oposta, mas compreendo bem este meu amigo.

Este não é um problema da cidade. Sem ruído, essa mesma cidade não funcionaria. Muito silêncio pode querer dizer uma de duas coisas: a cidade parou por algum motivo quando nada o fazia esperar, ou então está a dormir. Não por acaso, esta mesma conversa deu-se a propósito do Benfica, a nossa maior paixão comum. O silêncio que lançou esta troca de ideias não era o das aldeias por comparação com as cidades, mas antes uma sensação de que tem faltado voz ao Sport Lisboa e Benfica, em particular uma voz de comando. Neste caso não é uma cidade, é mesmo um país inteiro.

Já aqui observei que o silêncio de um líder pode ser de ouro. Na altura, disse-o para reconhecer que nem todos os estilos de comunicação no futebol português têm de ser histriónicos, em particular quando tantas outras figuras ao longo das últimas décadas teimaram em fazer do ruído e da toxicidade a sua forma de estar. Mas há um ponto a partir do qual o silêncio se torna um problema. O problema de demasiado silêncio é que ele pode começar a falar por nós. O silêncio cresce e a sua inação é amplificada. Pode ser facilmente interpretada como incapacidade de escutar, ou de reagir, indiferença, isolamento, ou embaraço.

Não sou especialista em liderança, mas o contexto diz-me que o estilo algo discreto, pacificador até, que Rui Costa cultivou nestes últimos dois anos e meio, atingiu o limite daquilo que é recomendável para um presidente do Benfica, ou daquilo que é benéfico para o Benfica. Daí que este texto contenha algum ruído, na esperança de que possa ser interpretado como um contributo saudável. O silêncio atual não me parece um estilo adequado para os tempos que o Benfica vive, que não são os piores mas também podiam ser significativamente mais marcantes, a vários níveis.

Eu sou um dos otimistas que ainda confiam na capacidade deste plantel para acabar a resolver os jogos com maior ou menor dificuldade, mais à base das individualidades do que do coletivo. Mas não deixo que isso me tolde a lucidez.

Perante um treinador que parece gradualmente aproximar-se do fim de um ciclo, um treinador de ideias gastas cujas decisões não raras vezes causam perplexidade; perante rumores incessantes de que a equipa não prepara devidamente os jogos; perante um rol de situações de gestão de plantel que evidenciam dificuldade a encaixar os jogadores numa ideia, talvez porque essa ideia seja hoje bastante falível ou incompreensível; perante as lacunas gritantes em posições fundamentais para a suposta ideia que se quer colocar em prática, perante tudo isto, e mesmo sabendo que Rui Costa tem feito do final de cada mercado de transferências uma oportunidade para refletir sobre as decisões tomadas, apetece perguntar se não devíamos saber mais sobre um planeamento desportivo que pode ser lido como deficitário, sobre os reforços de janeiro que afinal parecem reforços para agosto ou setembro, ou sobre os múltiplos projetos de jogadores que, tendo chegado num qualquer mercado de transferências, teimam em não cumprir o seu potencial.

Percebo que a estratégia de comunicação desaconselhe a assunção de falhanços em março, mas parece faltar algum norte e esclarecimento a tudo isto. Compreendo o estilo, mas o silêncio não responde a todas estas dúvidas e a ideia de que a equipa vai responder dentro de campo, deixando que o trabalho fale por si, parece igualmente em risco.

Não é preciso combater o silêncio de forma ruidosa, o que aliás pode ser visto como uma manobra de diversão. Nem silêncio, nem ruído. Às vezes basta ter uma voz e incutir personalidade suficiente no pouco que se diz, garantindo que, nesse pouco, não fica tudo por dizer ou esclarecer. Falei do planeamento desportivo, mas há um rol de situações que justificam um esclarecimento adicional. Não cabe nesta página uma análise exaustiva de cada um dos temas que me apoquentam, até porque consumi parte da mesma com as angústias futebolísticas, mas aqui vão mais algumas preocupações.

Veio a público uma notícia segundo a qual o Benfica recorreu à banca para assegurar liquidez, com vista a satisfazer necessidades de tesouraria. É legítimo pensar que a situação financeira do clube deveria ser outra nesta fase. Há motivos para preocupação? Será esta aparente falta de liquidez uma antecâmara para um final de época excessivamente dependente das vendas dos maiores ativos do clube?

Aproveito o embalo e junto outra dúvida que me apoquenta. A SAD teve até há poucos meses Domingos Soares de Oliveira como seu líder executivo. Desde então, não é inteiramente claro quem desempenha a função, seja porque tal não foi comunicado da forma mais eficaz, ou porque essa figura, a existir em termos formais, não se assume como tal na comunicação externa do clube. Esta questão é ainda mais importante se lembrarmos que Domingos Soares de Oliveira liderou sucessivas emissões de obrigações, intervindo publicamente para ajudar a garantir o sucesso destas operações financeiras. Mesmo que a sua longa passagem pelo Benfica tenha merecido críticas em alguns momentos, deixa um percurso em que exerceu funções de uma forma que contrasta com o aparente vazio atual.

Antes que a página acabe, pergunto também: o que impede o clube de avançar com a revisão dos estatutos? Fez na última semana dois anos que uma comissão de revisão estatutária foi criada. O trabalho dessa comissão foi partilhado com a direção. A direção terá trabalhado nessa versão e abriu a reflexão a mais contributos de sócios, isto há quase um ano. Desde então, nada aconteceu. Fará sentido pensar que uma época desportiva pode ser prejudicada por uma revisão estatutária? Tenho dificuldades em perceber como ou porquê. E tenho dificuldade em compreender o que atrasa este processo. Seria mau que tal se devesse a alguma espécie de tacticismo. Todos teriam a ganhar com a proposta de estatutos que foi apresentada, e seria bom que o clube avançasse nessa direção.

Por último, uma notícia conhecida há poucas horas. O presidente da Liga de clubes confirmou que foi o Benfica quem optou por não pedir alterações de calendário que pudessem facilitar a jornada europeia contra o Marselha. A equipa francesa, por seu lado, assim como as restantes ainda a disputar provas europeias, vai descansar entre os dois jogos frente ao Benfica. Qual o motivo para que não se tivesse aproveitado essa oportunidade, negociando com a Liga um calendário mais favorável?

Não está tudo mal, mas não está tudo bem. E talvez já seja tempo de se abandonar um certo estilo que privilegia a ausência de respostas claras. Uma liderança, mesmo num clube como o Benfica, não se deve decidir nem afirmar exclusivamente em função do sucesso desportivo, muito menos contando exclusivamente com essa dimensão para garantir o capital necessário. Podemos fazer mais para continuar a engrandecer o Benfica. Em suma: não é o momento para deixarmos que o silêncio responda por nós.

QOSHE - Um silêncio audível - Vasco Mendonça
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Um silêncio audível

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26.03.2024

O que impede o clube de avançar com a revisão dos estatutos? Fez na última semana dois anos que uma comissão de revisão estatutária foi criada

Há uns dias ouvia um amigo meu, nascido e criado em Lisboa, explicar que dá por si nervoso sempre que há muito silêncio à sua volta. Acontece-lhe geralmente quando sai da cidade e visita um local pacato com o objetivo de descansar. Acaba por repousar menos do que gostaria, talvez porque o seu cérebro já só saiba viver numa frequência sonora feita da paisagem sonora de uma cidade. Eu, que deixei de viver em Lisboa há cinco anos, tenho um pouco a sensação oposta, mas compreendo bem este meu amigo.

Este não é um problema da cidade. Sem ruído, essa mesma cidade não funcionaria. Muito silêncio pode querer dizer uma de duas coisas: a cidade parou por algum motivo quando nada o fazia esperar, ou então está a dormir. Não por acaso, esta mesma conversa deu-se a propósito do Benfica, a nossa maior paixão comum. O silêncio que lançou esta troca de ideias não era o das aldeias por comparação com as cidades, mas antes uma sensação de que tem faltado voz ao Sport Lisboa e Benfica, em particular uma voz de comando. Neste caso não é uma cidade, é mesmo um país inteiro.

Já aqui observei que o silêncio de um líder pode ser de ouro. Na altura, disse-o para reconhecer que nem todos os estilos de comunicação no futebol português têm de ser histriónicos, em particular quando tantas outras figuras ao longo das últimas décadas teimaram em fazer do ruído e da toxicidade a sua forma de estar. Mas há um ponto a partir do qual o silêncio se torna um problema. O problema de demasiado silêncio é que ele pode começar a falar por nós. O silêncio cresce e a sua inação é amplificada. Pode ser facilmente interpretada como incapacidade de escutar, ou de reagir, indiferença, isolamento, ou embaraço.

Não........

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