Influência e evolução do médio não têm termo de comparação no futebol português e apontam-no a um outro patamar de exigência, mesmo que a tenra idade aconselhe cautelas

Lembro-me de me embriagar com a elegância e classe de Dani e não vislumbrar aquele Cruijff contrarrevolucionário deste lado do espelho, satisfeito com o status quo e pouco disposto a sacrifícios, que nos desiludiu época a época qual falso Messias. Garanto-vos que até hoje, com estes olhos que a terra um dia acabará por comer, nunca vi melhor naquela tenra idade, mesmo que a última imagem que tenha deixado, uma de burguês acomodado, o coloque mais perto da mediania que o mais mediano dos mortais.

Tive a certeza de que Futre era um Dom Quixote dos tempos modernos, com capa e cabelos ao vento, a correr, sonhador, ao encontro de todos os moinhos de vento que cerravam fileiras como gigantes imaginários. Tudo para dedicar a vitória à Dulcineia que lhe acenava sempre expectante perto da baliza. Pensei outras vezes que se a Argentina podia ter um Maradona, o Paulinho era a nossa rockstar, não em cima do Rocinante, mas sim ao volante daquele Porsche amarelo, living in the fast lane. Por instinto. Incontornável. Imbatível. Inquebrável. Aquele golo de nenhures e antes que se fizesse tarde à Estónia, feito de uma fé gigantesca, preparou o terreno para um dos maiores anticlímaxes da minha vida. Eu sei que o show must go on, sócio. Só que, de repente e injustamente, o joelho cedeu. Logo depois da armadura.

Antes de a trivela começar a aparecer como golpe final após aquele finish him que se ouvia das colunas da máquina arcade favorita, descobri coisas em Quaresma que nunca encontrei em Cristiano. O engodo e a deceção. Essa magia de ilusionista, a mesma que hoje parecem querer destruir nas redes sociais, desvendando todos os truques e mais alguns. E nós, parvos curiosos, a passar de vídeo para vídeo sem nos apercebermos de tudo o que se perde... Admito: faltava-me perceber a importância do contexto. Talvez também ao próprio Harry Potter. Já aquela capacidade sobre-humana, robótica, de aguentar sempre uma repetição mais, fosse no ginásio ou a cada cruzamento ou livre, criada por uma fome inexplicável e inesgotável que se renovava a cada recorde, tornou-se maior do que qualquer talento inato. E tornou-o muito mais do que uma simples némesis de Messi. Num melhor de sempre alternativo.

Achei que a visão de Hugo Leal poderia decalcar a de Rui Costa, e Manuel Fernandes criar mais impacto do que Moutinho, de quem me habituei por fim a ouvir que fazia sempre tudo bem, sem nunca lhe ver nada de realmente extraordinário. Porque havia qualquer gene de médio francês nos jeitos do ex-Benfica e que batia certo com aquilo que me diziam ao ouvido: «Olha que ele vai acabar como médio defensivo.» Um Manelélé! Talvez tenha sido injusto, que me perdoe aquele que bate sempre bem. Fui também quase capaz de jurar que Figo, numa vida feita de curvas e contracurvas, nos iria levar ao primeiro título da nossa história, já depois de Chalanix (tantas saudades!) não ter bebido poção mágica suficiente antes de defrontar aquela França de Platini. E Tigana. Giresse. Fernández. Ou Genghini. Le carré magique. Oh là là!

Detestei Vidigal, confesso, por substituir com força bruta o futebol trigonométrico de Paulo Sousa, e desejei que se Capucho não jogasse como se pisasse areia quente na praia à procura de oásis um dia conseguiria chamar-lhe um Figo. E o menino de oiro, bicampeão dos miúdos, que se era assim mais cedo do que os outros tinha naturalmente de ser o maior de todos? Pensava eu. Era especial JVP. Nem sempre o compreenderam, mas quem joga para nota 10 num dérbi decisivo e consegue ser o pai de Jardel, tem de perceber que houve demasiados momentos da carreira em que não esteve na estrada certa.

O futebol é o mais espantosos dos jogos. Por não haver verdades absolutas e por ser sempre capaz de nos surpreender. De nos atirar da cadeira abaixo e nos levantar, sem ajudas, no ar. De nos dar socos no estômago e palmadinhas nas costas. De nos entregar cansados às costas do sofá, braços paralelos ao corpo desfalecido, a pensar em tudo o que acontecera. De fazer com que o coloquemos à frente de coisas mais importantes na vida. E quando não é imediato, quando nos bate às portas da memória, traz consigo uma paleta completa de sentimentos e o prazer de voltar a recomeçar. Porque é o que fazemos quando vemos um jogador pela primeira vez. E tentamos adivinhar o impossível.

Os primeiros toques na bola que vi de João Neves não me arrebataram. Percebia-se o que queria fazer, porém ainda era figura demasiado frágil, tenra, mal se aguentava em pé. Era preciso pisar o relvado como se estivesse inclinado e aprender primeiro a escalá-lo em vez de correr ou caminhar. Saber como resistir. Hoje, é impossível não ficar boquiaberto perante o que leva para cada partida. O crescimento é absurdo. Já não é, aos 19 anos, daqueles que se constrangem com um rótulo ou uma comparação. Já deixou o instinto de sobrevivência para trás. Quer saltar mais do que os outros, aguentar na luta contra os que vierem, recuperar a bola e passá-la rapidamente, chegar perto da baliza e rematar. Do primeiro ao último minuto. Não se nega a nada. E, com isso, sem o saber ou querer, lidera pelo exemplo. É ele quem faz toda a equipa mexer. Se é que já não repararam.

O que mais encanta é a velocidade com que pensa e depois decide, bem à frente do que sempre aconteceu neste país. Porque o mau passe leva logo atrás a recuperação, a bola perdida traz colada a reação, o drible curto encaixa à primeira no espaço exíguo e a visão tem aberto, parecendo-o elevar bem acima do próprio corpo, dando-lhe a leitura periférica para passes de rotura. A influência que ganhou não é natural e, não querendo ser novamente injusto com quem nada tem que ver com o assunto, não há termo de comparação. Apreciem, sim, enquanto o temos por perto. A contagem decrescente começou e é imparável.

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João Neves é diferente, a contagem já começou

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05.04.2024

Influência e evolução do médio não têm termo de comparação no futebol português e apontam-no a um outro patamar de exigência, mesmo que a tenra idade aconselhe cautelas

Lembro-me de me embriagar com a elegância e classe de Dani e não vislumbrar aquele Cruijff contrarrevolucionário deste lado do espelho, satisfeito com o status quo e pouco disposto a sacrifícios, que nos desiludiu época a época qual falso Messias. Garanto-vos que até hoje, com estes olhos que a terra um dia acabará por comer, nunca vi melhor naquela tenra idade, mesmo que a última imagem que tenha deixado, uma de burguês acomodado, o coloque mais perto da mediania que o mais mediano dos mortais.

Tive a certeza de que Futre era um Dom Quixote dos tempos modernos, com capa e cabelos ao vento, a correr, sonhador, ao encontro de todos os moinhos de vento que cerravam fileiras como gigantes imaginários. Tudo para dedicar a vitória à Dulcineia que lhe acenava sempre expectante perto da baliza. Pensei outras vezes que se a Argentina podia ter um Maradona, o Paulinho era a nossa rockstar, não em cima do Rocinante, mas sim ao volante daquele Porsche amarelo, living in the fast lane. Por instinto. Incontornável. Imbatível. Inquebrável. Aquele golo de nenhures e antes que se fizesse tarde à Estónia, feito de uma fé gigantesca, preparou o terreno para um dos maiores anticlímaxes da minha vida. Eu sei que o show must go on, sócio. Só que, de repente e injustamente, o joelho cedeu. Logo depois da armadura.........

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